O bisturi do rio rasga a carne da terra
e, assim, retorcida e cirúrgica, a floresta
deixa à mostra a veia exposta.
O rio é um mar com margens,
obsessivo e operoso,
sempre com falo ereto e fértil,
quando não defeca as impurezas industriais,
que se rabisca nos papéis da terra,
e vai cuspindo gente ribeirinha.
No campo amazônico,
as casas de varandas arregaçadas
molham as canelas na água.
Veneza selvagem, de palacetes de madeira,
renascimento de instintos insopitáveis.
O silêncio da mata
pia e borda
à beira amazônica das águas.
A água está dentro dos homens
com seus naufrágios. Um dia
a morte virá - colapso - e o
legista assinará: afogado de si mesmo.
A palafita, em meio à selva,
é um bicho de madeira:
tem vértebras das paredes,
tem respiração pelos brônquios das janelas,
excreta pelas fossas do quintal.
Morto o bicho de pernas finas,
seu oco desabitado de entranhas
torna-se hospedeiro do micróbio homem
que ali secreta seus humores
e a palafita, bicho anfíbio,
passa a ser transmissor
das pequenas misérias humanas.
(Terratreme. Brasília: Fundação Cultural do DF, 1998)
imagem retirada da internet: rio amazonas, denise barsted
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