I
Se
como diz a filosofia popular, de médico e louco todos têm um pouco, a um médico
louco não há o que acrescentar. Foi a esse personagem insólito que o médico e
neurocientista Edson Amâncio recorreu para empreender a sua terceira incursão
no romance com Diário de um Médico Louco
(Taubaté, LetraSelvagem, 2012). Com um tanto de autobiográfico – que fica claro
quando se sabe que o autor realizou nos anos 80 uma viagem a São Petersburgo e
Moscou, ainda à época do comunismo –, este relato é um diálogo que Amâncio faz
não com a literatura médica a que teve acesso como profissional da área de
Saúde, mas com autores que marcaram a sua vida de ficcionista, especialmente
Fiodor Dostoievski (1821-1881), a quem estudou em profundidade, até porque
atraído pelas ligações que pode haver entre genialidade e esquizofrenia ou até
mesmo com o desequilíbrio mental.
Não
por acaso Amâncio recupera neste livro a São Petersburgo que conheceu – ao
tempo, chamada de Leningrado –, com o seu Hermitage, o famoso museu, a
Fortaleza de São Pedro e São Paulo – onde Dostoievski permaneceu antes de ser
encaminhado para o exílio na Sibéria – e, principalmente, o Museu
Literário-Memorial dedicado ao autor russo que fica no mesmo apartamento da rua
Kuznechny 5/2, onde ele morou, aberto em novembro de 1971, por ocasião do 150º
aniversário do nascimento do escritor.
II
O
relato começa com um clichê da literatura. No caso, é um médico escritor que
nada tem de louco que tem acesso a um texto de outrem, que seria outro médico
às voltas com distúrbios mentais, um tal Dr.B*. Pelo que se lê da apresentação
escrita por esse médico sensato, o tal Dr. B* seria um médico um tanto
inconsequente, dado a prazeres etílicos, gastão, acossado por credores e capaz
de tomar atitudes tresloucadas. Por
acaso, nos anos 70 e 80, no círculo de médicos contemporâneos do autor na
cidade de Santos, havia um médico que pouco fugia desse figurino: um anestesista
considerado de mão cheia, mas que, ao final das tardes de domingo,
invariavelmente, saía da praia carregado em triunfo, depois de dissipações
capazes de fazer corar Baco.
Resultado
de uma mente conturbada, este irregular relato não tem um fio condutor, como
reconhece o médico sensato na apresentação, a quem o colega desvairado passou a
tarefa de encontrar meios de torná-lo público depois de sua morte. Se não se
trata de uma memória de além-túmulo, à semelhança ao Brás Cubas de Machado de
Assis (1839-1908), o manuscrito teria sido localizado num baú por familiares do
médico tresloucado e traria um apelo do autor ao médico sensato seu amigo para
que o publicasse de alguma forma.
Depois
de contar suas primeiras decepções com a medicina, ainda ao tempo de acadêmico
na cidade de Santos, o médico relata uma série de acontecimentos insólitos no
melhor estilo machadiano em que procura mostrar que os loucos estão na
sociedade enquanto os de mente sã estariam nos asilos e manicômios – ou seja,
um mundo de sinais invertidos. Em meio ao relato, o médico louco surpreende o
leitor com os acontecimentos da viagem que fizera a Rússia, contando em
detalhes pequenos incidentes como o hábito que os hotéis moscovitas preservam
até hoje de permitir que, de madrugada, vozes femininas langorosas liguem para
o quarto do hóspede oferecendo serviços íntimos, esteja o cliente acompanhado
ou não da esposa.
Mais
que isso, ler este relato é uma oportunidade de conhecer um pouco de Dostoievski,
sobre cuja obra o autor mesmo – não o médico louco – é especialista. Assim,
desfilam aos olhos do leitor pormenores do outro museu dedicado a Dostoievski,
que fica ao Norte de Moscou, montado na casa onde o romancista passou a sua
infância, perto do hospital em que seu pai trabalhava.
III
O
mundo vivido pelo médico louco de Amâncio é o mundo do pesadelo e do bode
expiatório, de cativeiro, dor e confusão, como diria o crítico canadense
Northrop Frye (1912-1992). Ou ainda: o mundo do trabalho pervertido ou
desolado, de ruínas e de catacumbas, instrumentos de tortura e monumentos à
insensatez, que, por sinal, são encontrados no mundo ficcional de Dostoievski. Seja
como for, depois da descida ao inferno dostoievskiano, o protagonista do relato
retorna à cidade de Santos como a um mundo que morre, tal qual o salmão idoso
retorna ao local de sua procriação, para se continuar aqui a citar Frye.
Como
observa o poeta e crítico Ademir Demarchi, doutor em Literatura Brasileira pela
Universidade de São Paulo (USP) e editor da Revista
Babel, autor do texto de apresentação, o livro tenta transmitir uma
“verdade”, um relato de algo que existiu, mas que, para o leitor, o tempo todo vai
se colocando, de fato, como seguidos falseamentos. “A dúvida, assim, perpassa a
leitura, afinal em nada se pode compactuar com o narrador, pois as viagens que
relata, uma delas à Rússia de Dostoievski, podem ser totalmente falsas, uma vez
que fantasias, delírios de um louco que não saiu do entorno de seu quarto, para
mencionar Maistre”, diz.
IV
Nascido
em Sacramento-MG em 1948, Edson Amâncio é médico neurologista estabelecido em
Santos há mais de 30 anos. Graduado,
mestre e doutor em Medicina, integra o corpo clínico do Hospital Albert
Einstein, em São Paulo. Sua estréia
literária deu-se com os contos de Em
pleno delito (1986), vindo a seguir Cruz
das almas (1988), romance, Pergunte
ao mineiro (1995), crônicas, e Minha
cara impune (1997), romance.
Em
2006, publicou O homem que fazia chover e
outras histórias inventadas pela mente, obra que chamou a atenção da crítica
e do público por discorrer sobre as ligações ainda obscuras entre distúrbios
psíquicos e genialidade. Nesse livro, o autor comenta casos clínicos bizarros
de pacientes comuns e de mentes consideradas geniais como John Nash, Mozart,
Machado de Assis, Van Gogh, Flaubert, Virgínia Wolf e Bill Gates.
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DIÁRIO DE UM MÉDICO
LOUCO, de Edson Amâncio. Taubaté: Editora LetraSelvagem,
152 págs., 2012, R$ 30,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br Site:
letraselvagem.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa
pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil
Perdido (Lisboa, Caminho,
2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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