Já não me lembro que livro ia pegar no alto da estante quando minha atenção foi sequestrada por aquelas encadernações em que há muito não tocava. Só sei que ali fiquei por um bom tempo, no último degrau da escadinha, a folhear quatro romances de F. Scott Fitzgerald, paixão literária que me acompanha desde o final da adolescência. A ela sou fiel, e continuo achando que este é dos raros escritores a cuja magia verbal nenhum filme fez ou fará justiça inteira.
Mas não era nisso que eu pensava enquanto lambiscava os livros - os mesmos exemplares que depois de devorar, aos 18, 19 anos, julguei indispensável fazer encadernar em percalina verde, o máximo que alcançavam meus bolsos rasos de estudante, sem esquecer de pedir iniciais minhas nas lombadas, na certeza de que aquelas caprichadas edições da Civilização Brasileira me acompanhariam vida afora. Posso não ter tirado o melhor proveito, mas me consola o uso que delas fez, de carona, meu comparsa Jaime Prado Gouvêa, o refinado fitzgeraldiano contista de Fichas de Vitrola e romancista de O Altar das Montanhas de Minas.
Quando dei por mim, estava acomodado no sofá, onde varei a tarde entre as páginas de Este Lado do Paraíso, Belos e Malditos, O Grande Gatsby e Suave É a Noite. Comecei revisitando enredos e personagens, mas não tardei a me ver encalhado em algo que é de Fitzgerald, mas também meu: as marcas da caneta com que, no pique da juventude, fora grifando achados, encantado - e, ao mesmo tempo, humilhado, ao constatar que alguém, antes de mim, pusera em palavras sutilezas que (eu não deixava por menos) tinham tudo para ser da minha lavra. Valeria a pena, aqui ao rés do chão, escrever o que quer que fosse, depois de ter o Fitzgerald espetado no papel tantas frágeis, fortíssimas borboletas?
Essa foi minha viagem naquela tarde: reencontrar as pedrinhas com que eu, Joãozinho e Maria no bosque da literatura, assinalei meus passos inaugurais no universo de um artista de primeiríssima grandeza, num tempo em que, como o Amory Blaine de Este Lado do Paraíso, ainda "caminhava sobre as almofadas de ar que se estendem sobre o asfalto, aos 14 anos". A caneta do garoto sublinhou a pérola, claro, e muitas outras, entre elas esta sábia advertência: "Não há dádiva mais perigosa à posteridade do que algumas trivialidades ditas com inteligência". Tanto quanto Amory, e talvez mais pretensioso, eu me considerava nada menos que "o produto de um espírito versátil em meio de uma geração inquieta". Pois sim...
Em Suave É a Noite, me identifiquei, quem duvidaria?, com o charmoso psiquiatra Dick Diver nos momentos em que "se via naquele dilema dos moços, quando se deve decidir se vale ou não a pena morrer pelas coisas em que não mais acreditamos", ou na passagem em que se julgou "feliz por ter uma existência, nem que essa existência fosse apenas um reflexo nos olhos úmidos de Nicole", a linda paciente com quem se casara.
Senti dilacerante inveja de Fitzgerald, capaz de sacar que "às vezes é mais difícil a uma pessoa privar-se de uma dor do que de uma alegria", ou que, também às vezes, "a vastidão de um assunto só pode ser condensada numa mentira". Como Nicole, o jovem leitor de Suave É a Noite gostaria de sentir-se "apenas um conjunto de diferentes pessoas simples".
De O Grande Gatsby, nem precisaria ter rabiscado o livro para me lembrar agora, já na primeira página, que "um certo senso de decência fundamental é concedido ao homem, desigualmente, ao nascer", e, na última, que ao fim e ao cabo "prosseguimos, botes contra a corrente, impelidos incessantemente para o passado".
Tendo relido seus grifos de rapaz, resta ao encanecido senhor percorrer de ponta a ponta os livros que tanto o fascinaram na juventude, e não só os de Fitzgerald, à procura, desta vez, das pepitas pelas quais passou, em idades nem tão verdes, sem se dar conta do que lhe era oferecido. Não há releitura de Drummond que não dê a espetada: quem era eu, nas viagens anteriores, que não vi tamanhas maravilhas? O fecho de Versos À Boca da Noite, por exemplo, em que o poeta fala de "uma inteligência do universo comprada em sal, em rugas e cabelo". É o que quero para mim. O preço, pelo menos, já paguei.
(fonte: Estadão)
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