FABIO DE SOUSA COUTINHO
Considerado por colegas, discípulos e
leitores o mais lúcido e referencial crítico literário surgido nos
Estados Unidos nas seis últimas décadas, Harold Bloom (1930) é, acima de
tudo, um arguto intérprete e devotado divulgador shakespeariano.
Seu livro de maior projeção, entre os
cerca de vinte, todos de qualidade superlativa, que publicou desde
1959, constitui verdadeiro tratado, ao longo do qual, peça após peça,
examinou os trinta e cinco textos que compõem a inigualável obra poética e
dramatúrgica do bardo de Stratford-upon-Avon. O calhamaço se intitula “SHAKESPEARE
- A Invenção do Humano” e foi editado no Brasil, com primorosa tradução de José
Roberto O'Shea e revisão de Marta Miranda O'Shea, pela Editora
Objetiva, no ano 2000. O Professor Bloom dividiu seu monumento estético,
de quase novecentas páginas, em nove partes, correspondentes a igual número de
categorias que atribuiu, com irreprochável critério científico, ao OPUS THEATRALE de Shakespeare.
Assim, na Parte I, As Primeiras
Comédias, figura, por exemplo, A MEGERA DOMADA; na Parte II, Os Primeiros
Dramas Históricos, aparecem HENRIQUE VI e RICARDO III; na Parte III, As
Tragédias de Aprendizado, o destaque é para ROMEU E JULIETA; na Parte IV, As
Altas Comédias, Harold Bloom analisou, entre outras, SONHO DE UMA NOITE VERÃO,
O MERCADOR DE VENEZA e MUITO BARULHO POR NADA; na Parte V, Os Grandes Dramas
Históricos, desponta AS ALEGRES COMADRES DE WINDSOR; na Parte VI, As "Peças-Problema",
brilha MEDIDA POR MEDIDA; na Parte VII, As Grandes Tragédias, cinco peças
esplendorosas: HAMLET, OTELO, REI LEAR, MACBETH e ANTÔNIO E CLEÓPATRA; na Parte
VIII, O Epílogo Trágico, avulta CORIOLANO; e , por fim, na Parte IX, Os
Romances, seis títulos que enfatizam o diferencial shakespeariano, sendo A
TEMPESTADE o mais pujante e arrebatador dentre eles.
Ao abranger, em trabalho de quase
impossível superação, um conjunto literário que inaugurou a forma mais corrente
de representação de personagem e personalidade, em língua inglesa, Harold Bloom
sustenta que Shakespeare, ao mesmo tempo, inventou o humano, conforme hoje nos
é conhecido. Nesse aspecto, o mestre de Yale chega a ponto de afirmar que seu
ídolo é o primeiro psicólogo, e Sigmund Freud, que viveu trezentos anos depois
de William Shakespeare, um "retórico tardio".
Nascido em 1564, o fenomenal escritor
faleceu, não tão precocemente para os padrões etários de sua época, aos 52 anos
de idade, em 1616. São literalmente incontáveis as utilizações e derivações
artísticas de seus trabalhos, nos quatro séculos e meio que transcorreram desde
que veio ao mundo. Sua importância intelectual encontra pouquíssimos paralelos
na história cultural da humanidade, na era cristã: talvez a ele se equiparem,
ou dele se aproximem, no idioma espanhol, Miguel de Cervantes, precursor do
romance ocidental; o florentino Dante Alighieri, fundador, no primeiro quartel
do século XIV, como corolário linguístico do dialeto toscano, do italiano
moderno em que está moldada, lapidarmente, A DIVINA COMÉDIA; Luís
Vaz de Camões e Fernando Pessoa, os maiorais de Portugal e de nosso
riquíssimo vernáculo; Victor Hugo e Marcel Proust, gigantes da gloriosa
literatura francesa; Johann Wolfgang von Goethe, expoente da culta, cerebral
e admirável prosa alemã.
Na jubilosa celebração sem fronteiras
dos 450 anos de seu nascimento, torna-se inescapável atestar que William
Shakespeare marcou, pela grandeza inexcedível de sua criação imortal, um
encontro sem fim com todas as posteridades. Existirá enquanto houver tempo e
espaço. É espécime raro, único, absoluta e impermeavelmente genial, que saiu da
vida para viver no (uni)verso.
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