‘Os ventos gemedores’: saga do Brasil
arcaico
Adelto
Gonçalves (*)
I
No Brasil, sempre foi assim: a luta pela terra invariavelmente produziu heróis
falsos e mártires verdadeiros. E o Estado sempre esteve ao lado dos mais
fortes, aqueles que conseguiam pela força subjugar os demais. Para aqueles que
venciam, nunca faltou a falsa pena dos escribas para legalizar suas conquistas nos
papéis dos cartórios e incensá-los na História. Ainda hoje é assim: os mandões
do sertão ganham placas e viram nome de fundações ou de ruas, avenidas ou
rodovias. Já para os derrotados sobram – quando muito – uma vala sem lápide e o
esquecimento eterno.
Sempre foi assim, desde os tempos dos chamados bandeirantes, homens mestiços, filhos de mães indígenas ou
miscigenadas, que largavam tudo na cidade de São Paulo ou em vilas como Santana
do Parnaíba e Taubaté para, a partir de Araritaguaba (hoje Porto Feliz),
seguirem em canoas à frente de uma legião de índios carijós, mulatos e negros
em busca de indígenas que pudessem ser escravizados, de ouro e pedras preciosas
e mais terras. Como arrastaram as fronteiras do Brasil para além do Tratado de
Tordesilhas, hoje, alguns desses régulos são homenageados com estátuas e
monumentos em que aparecem como homens de feições brancas, bem trajados.
Provavelmente, seguiam para os sertões descalços e quase semi-nus, como os
indígenas e africanos que comandavam.
Ainda hoje é assim. Volta e meia, algum parlamentar é acusado de manter
trabalhadores sob regime escravo em suas fazendas. De outros dizem que, em suas
terras, ninguém entra sem autorização: se alguém entrar, ainda que
involuntariamente, será recebido à bala por modernos jagunços bem armados,
enquanto o mandão desfila sua onipotência em Brasília ou mesmo em congressos
lusófonos em Lisboa. Os
mandões modernos já não são grosseiros como os de outros tempos: afáveis,
conquistam o interlocutor com muita simpatia e salamaleques.
E, assim, o mundo arcaico convive com o Brasil moderno sem maiores sobressaltos.
É esse Brasil arcaico que o leitor vai encontrar no romance Os ventos gemedores, de Cyro de Mattos
(1939), que acaba de ser lançado pela editora LetraSelvagem, de Taubaté-SP, em
sua coleção Gente Pobre (narrativas).
Ambientada nas terras do Sul da Bahia em época que se supõe que seja a de
meados do século 20, a
trama se dá no condado imaginário de Japará, à la William Faulkner (1897-1962), região onde a mata até então
impenetrável começa a dar lugar às primeiras roças de cacau e pastos para bois
e vacas. É o cenário de Terras do Sem Fim (1943), clássico romance
de Jorge Amado (1912-2001), que, a rigor, inaugura a saga cacaueira do Sul da
Bahia.
II
Aqui, a luta pela terra coloca, de um lado, Vulcano Brás, um régulo do
sertão acostumado a mandar bater e até matar; de outro, o vaqueiro Genaro,
escolhido como líder pelos explorados, gente envelhecida precocemente que traz
a pele engelhada pelo trabalho de sol a sol. Como Almira, moradora de um
casebre, que procura entender, numa espécie de monólogo interior, como o
vaqueiro Genaro encontrou coragem para chefiar os homens no levante:
“(...) Ele havia dito que os homens estavam dispostos a enfrentar o
despotismo de Vulcano Brás, “não tenha medo, dessa vez, a gente vai tirar o
freio da boca, a argola da venta, o chicote das costas e a espora da barriga”.
Deu-lhe em seguida a notícia de que os homens queriam ele como chefe do
levante, ela então teve medo, pensou na morte a espreitar pelos cantos todos
eles, de dia e de noite”.
Depois, Almira questiona: “Que adianta fazer esta revolta, Genaro? O lado
de Vulcano Brás sempre foi mais forte”. Mas ele responde “A pior derrota é
daquele que não luta”, acrescentando que “onde ninguém faz nada contra Vulcano Brás
só a vontade dele é a única que impera, e os que se agacham permanecem assim
mesmo o tempo inteiro, trabalhando, trabalhando, sem nunca ter nada na vida”.
Ainda hoje é assim não só Sul da Bahia, mas em todo o Brasil: aqueles que
trabalham na terra só costumam se aposentar aos 65 anos de idade, isso quando
conseguem apresentar papelada reconhecida pelos sindicatos rurais que comprove
o tempo de trabalho na roça. Para ganhar salário mínimo.
O final deste livro conta a batalha corpo a corpo entre os jagunços de
Vulcano Brás e os homens de vaqueiro Genaro e – ao contrário do que normalmente
se dá na vida real – a vitória dos explorados, apesar das baixas de lado a lado.
A vitória maior, porém, que se registra é da Literatura Brasileira que sai
desse romance mais enriquecida.
III
Nascido em Itabuna, ao Sul da Bahia, Cyro de Mattos conhece bem a região
que retratou em seu romance. Foi ali que fez os primeiros estudos, concluindo o
curso ginasial no Colégio dos Maristas, em Salvador. Depois ,
fez o curso de Direito na Universidade Federal da Bahia, concluindo-o em 1962.
Hoje, é advogado aposentado, depois de militar durante mais de quatro décadas
nas comarcas da região cacaueira na Bahia. Antes, atuou como jornalista no Rio
de Janeiro, passando pelas redações do Diário
de Notícias, Jornal do Comércio e
O Jornal.
Contista, ensaísta, cronista e poeta, é autor também de livros de
literatura infanto-juvenil e organizador de várias antologias. Já publicou mais
de 50 livros e obteve numerosos prêmios literários. O principal foi o Prêmio
Nacional de Ficção Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, para o
livro Os Brabos (Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1979), romance elogiado por Jorge Amado, Carlos
Drummond de Andrade (1902-1987) e Alceu Amoroso Lima (1893-1983).
Sua estréia, porém, ocorreu em 1966 com o livro Berro de fogo e outras histórias, em que já se anuncia a sua
preocupação em denunciar “a decadente engrenagem econômica cacaueira dominada
pelo coronelismo”, como observa Nelly Novaes Coelho, professora titular de
Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP), autora do posfácio
que constitui um texto-homenagem aos 40 anos (1966-2006) da carreira literária
do autor. Para a professora, “a obra de Cyro de Mattos já conquistou seu lugar
nos quadros da Literatura Brasileira contemporânea”.
Cyro de Mattos está incluído na antologia Narradores da América Latina, publicada na Rússia, ao lado do
argentino Julio Cortázar (194-1984) e do uruguaio Mario Benedetti (1920-2009),
entre outros. Seus poemas foram incluídos na antologia Poesia do Mundo 3, organizada por Maria Irene Ramalho de Sousa
Santos, da Universidade de Coimbra, publicada em Portugal, que teve tradução
para o inglês.
Em 2010, participou da Feira Internacional do Livro de Frankfurt, quando
autografou a antologia poética Zwanzig von
Rio und andere Gedichte, publicada pela Projekte-Verlag, de Halle, com
tradução de Curt Meyer-Clason, tradutor de Guimarães Rosa (1908-1967). E em
2013, esteve presente ao XVI Encontro de Poetas Iberoamericanos da Fundação Cultural
de Salamanca, na Espanha. Tem livros publicados em Portugal, França, Alemanha e
Itália.
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Os ventos gemedores, de
Cyro de Mattos. Taubaté-SP: Editora LetraSelvagem, 208 págs., R$ 30,00, 2014.
Site: www.letraselvagem.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa
pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora,
1981), Gonzaga, um poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o perfil perdido
(Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio
Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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