domingo, 10 de junho de 2018

Clarice Lispector, uma biografia, de Benjamin Moser



A primeira vez que vi Clarice Lispector foi no verão de 1971. Três rapazes e uma moça decidiram publicar um volumezinho de poemas iniciais chamado Canto aberto. A moça era a poeta e compositora Denise Emmer e os rapazes o poeta e ator Sérgio Fonta, Paulo Gurgel Valente e eu. Estávamos na Prudente de Morais, na bilheteria àquela hora dispensável e amigável do Teatro Ipanema. Tony Ramos leria os poemas de Denise. Os de Sérgio Fonta caberiam ao ator e dono do teatro Rubens Correa (Sérgio acaba de publicar a biografia desse grande ator do teatro brasileiro); de Paulo Valente, os poemas seriam lidos por Claudio Cavalcanti. Os meus por Mário Lago. Alguém me bateu no ombro e escutei a voz do Paulo: “Ronaldo, quero te apresentar minha mãe”. A mãe do Paulo era Clarice Lispector.

Vi uma senhora – para mim, aos dezoito anos, uma senhora – vestida de preto, com batom vermelhíssimo e que me estendeu a mão mais para beijá-la que para o aperto. Sem jeito, apertei a mão que não inclinara. Ela deixou escapar um longínquo sorriso e um olhar que até hoje não esqueço. Tudo isso me voltou ao ler a biografia de Clarice, escrita por Benjamim Moser, e publicada pela Cosacnaif.

Mais tarde, quando Clarice começa a ser publicada pela editora Artenova, de Álvaro Pacheco, via-a duas ou três vezes. Não me arriscava a chegar perto dela. Era o tempo em que publicou Onde estivestes de noite ou Via crucis do corpo, se não me engano. O editor não ficou bem na foto na biografia de Moser: os autores não recebiam os direitos autorais e Clarice chegou a ser vítima de um parecer sobre suas traduções em que a parecerista acusava-a de modificar “o significado das palavras e mesmo inversão do sentido das frases”. O mais cruel para mim era ver um despreparado jornalista que se fazia de assistente do editor desconhecer o talento e a grandeza de quem lhe levava as traduções. Pobre Clarice.

O livro Clarice, uma biografia, de Benjamin Moser, é excelente. Começa com os lugares-comuns que conhecemos sobre Clarice e pensei comigo que ia ler algo que já conhecia de sobeja, quando o autor interrompe e, num corte, leva o leitor até a Ucrânia dos antepassados de Clarice. Numa pesquisa rigorosa e inteligente, o autor nos conduz a um mundo obscuro, faminto e desumano da perseguição aos judeus e da fuga dos Lispector até o Novo Mundo, em Maceió e depois Recife. Para mim, é a melhor parte da biografia, pois mais ou menos sempre sabemos algo da personalidade e, pelos livros, temos uma visão muito idiossincrática da autora de Perto do coração selvagem.


É comum nas biografias os autores utilizarem o texto do biografado para dar suporte a determinadas fases da sua vida. Desta maneira, geralmente ficam a meio caminho entre encontrar indícios que comprovem suas afirmativas ou fazer crítica literária. Moser muito inteligentemente utiliza o texto de Clarice, principalmente aqueles mais biográficos e que parece não haver discordância, para apoiar sua análise. Envereda um pouco pela crítica literária – o que é saudável –, quase sempre se apoiando também na repercussão que os textos tiveram à sua época. Todo cuidado é pouco, contudo, para que não se misture o processo criativo que tem sua autonomia e a vida dos biografados.

Moser consegue criar um clima de curiosidade e revela-se exímio pesquisador, desvelando para o leitor uma Clarice Lispector de corpo inteiro: a paixão segundo C.L. Não é à toa que o livro teve uma vendagem expressiva. Algumas considerações sobre Água Viva me pareceram exageradas, mas respeito a visão e a análise do biógrafo. O certo é que o livro é fascinante e mostra uma grandeza à altura que está perto do coração selvagem de Clarice Lispector. (RCF)

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