(publicado no sãopauloreview.com.br)
Autor de vasta e premiada obra, Ronaldo Costa Fernandes publicou neste ano de 2019 dois novos romances, O apetite dos mortos (Jaguatirica), mescla de vida e ficção, e Vieira na ilha do Maranhão (7Letras), realidade romanceada. Nascido em 1952 em São Luís (MA), o escritor cresceu e se formou no Rio de Janeiro e, depois de ter vivido quase uma década em Caracas (onde foi diretor do Centro de Estudos Brasileiros na Embaixada do Brasil), mora há mais de 20 anos em Brasília. Sua obra inclui romances, contos, poemas e ensaios. Com O morto solidário venceu o prêmio Casa de las Américas em 1990, livro lançado aqui pela Revan em 1998. Conquistou outros prêmios expressivos com ficção e poesia. Autor de O narrador do romance (1996), é doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília (UnB).
O apetite dos mortos cativa desde a bela capa, imagem da agência Shutterstock em cores que fazem lembrar o Guerra e Paz de Portinari. E de certa forma o romance trata de uma espécie de guerra, uma guerra de egos entre famílias, amigos e desafetos, e da busca de um possível sossego. Narrado em primeira pessoa, em linguagem fluente e agradável, mas nunca banal, quase sempre em curso sinuoso como o fluxo da memória (“Seria uma cobra o ato de lembrar?”), traz as andanças físicas, afetivas, aflitivas e intelectuais de um rapaz aspirante à carreira literária, no seio de uma grande família sofrida e dividida, envolta em crimes sem solução nem castigo, fugas, desencontros, tudo misto de fatos, loucura ou devaneio.
Alguns exemplos: uma mulher que não acredita na morte da filha a imagina enterrada viva pedindo “mãe, mãe, vem me buscar”; um homem imagina-se perseguido e acaba matando o perseguidor com dois tiros, crime à luz do dia que confessa, mas ninguém viu; uma viúva recusa-se a pagar o aluguel do apartamento em que morava e o abandonou por causa do aparecimento do marido no imóvel. O apetite dos mortos é insaciável, mas os vivos também têm sede de vida. Em permanente conflito existencial, o rapaz ouve de seu analista que no seu caso não existiam aberração ou desejos retorcidos, “mas era algo daninho, o roer em silêncio do cupim”. Ele chega a se confundir com o entorno. “Difícil delimitar onde acabava meu corpo e começava o mundo. A realidade era extensão dele”. Lembra-se saudoso do pai, advogado íntegro: “Não estudei Direito para defender patifes”.
Sempre preciso e poético (“Ele, moreno; ela, alourada. Ele, alto demais; ela, exata”. “Um porte inglês, o paletó cruzado”), o texto traz ecos machadianos: “O navio partiu numa tarde chuvosa, poucas pessoas no cais, dez ou onze lenços apenas no convés da embarcação”; “Renata fizera dezoito anos, não era feia, tampouco bonita”.
Não falta humor no romance. O garoto era admirado por uma professora, que, abalada pelo abandono do marido (um garimpeiro bêbado), chama o aluno em casa.
“Quando entrei, ela disse:
– Camõesinho, recita pra mim Os Lusíadas.
E lá comecei:
– Por mares nunca d’antes navegados passaram além da Trabobana.
Ela revirou os olhos, o rosto enrubesceu, uma baba saiu do canto da boca, dei o fora da casa, nunca mais voltei lá.”
Uma história do Brasil contemporâneo, “num relato de balanço ou acerto de contas”, com a presença de escritores conhecidos, nem sempre nomeados, às vezes apenas sugeridos, como Ana Cristina César, Nelson Werneck Sodré, Bernardo Élis, Manuel Puig, Moacir Werneck de Castro, Gianfrancesco Guarnieri, Shakespeare, Nietzsche, Umberto Eco etc., O apetite dos mortos atesta a riqueza da literatura brasileira atual. O romance histórico Vieira na ilha do Maranhão, sobre a saga do jesuíta em defesa de índios e escravos, é tema para futuro artigo.
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Hugo Almeida é autor de vários livros, entre eles o romance Mil corações solitários (Prêmio Bienal Nestlé-1988), e os infantojuvenis Meu nome é Fogo (Dimensão) e Viagem à lua de canoa (Nankin). É doutor em Literatura Brasileira pela USP, com tese sobre A rainha dos cárceres da Grécia, romance de Osman Lins.
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