Estava em Lisboa, numa feira internacional do
livro, e comecei a folhear o volume do padre João Filipe Bettendorff e sua
passagem pelo Maranhão. O padre Bettendorff, nascido em Luxemburgo, de cultura
alemã, mal conviveu com Vieira. Em seu livro Crônica da missão da Companhia
de Jesus no Estado do Maranhão, Bettendorff relata feitos que me
encantaram. Era uma terra virgem, a criação de um novo mundo. Uma civilização europeia
transplantada ao meio hostil e mágico. De repente, no torvelinho da feira, busquei
por um livro de Pepetela sobre Vieira na África. Os livreiros desconheciam tal
livro. Percorri, além das barracas da feira, as livrarias tradicionais. Nada.
Eu até podia descrever a capa do livro. Busquei no Google e não havia livro
nenhum de Pepetela sobre Vieira na África. Não me convenci. Havia um engano de
todos. Eu tinha certeza de que Pepetela escrevera tal livro. Os dias se
passaram, por um momento esqueci Pepetela, seu livro desconhecido, e retomei a
leitura do volume do padre Bettendorff. Passado um mês, a inquietação retornou.
Tinha de encontrar o inexistente livro de Pepetela. Cheguei até a pensar num
conto para me livrar daquilo que começava a ser uma ideia fixa. Foi aí que
resolvi me livrar daquela obsessão de outra maneira: escrevendo o livro de
Pepetela. Com uma diferença. Não se passaria na África, mas na minha cidade
natal, São Luís do Maranhão.
Vieira chegou no Maranhão em janeiro de 1653. E
retorna a Lisboa em 1661. Tinha vivido entre nobres, grandes cidades e meios
intelectuais privilegiados. Era o preferido do rei D. João IV. A Inquisição o
vigiava e seus inimigos conspiravam contra ele. Vieira, por toda sua vida, será
um personagem polêmico. Entre muitas das suas ideias e ações, pregou e agiu
para que os judeus portugueses exilados na Holanda financiassem navios de
guerra para Portugal, argumentou que não valia a pena brigar por Pernambuco com
os holandeses. A solução era inusitada. Portugal deveria comprar Pernambuco dos
holandeses. Morou em Amsterdã, onde tirou o hábito e se vestiu de veludo
carmesim, colocou bigode crescido e espada à cinta, além de discutir teologia
na sinagoga com rabinos ilustres.
Em 1654, retorna a Portugal para pedir a seu
protetor D. João IV que editasse outra lei colocando nas mãos dos jesuítas o
destino dos índios do Maranhão, o que despertou mais ódio dos colonos locais. Durante
todos os anos que permaneceu no Maranhão, empreendendo entradas para as terras
do Pará e ilha de Marajó, que chamava de ilha Joanes, ou ao sul, até a Serra do
Ibiapaba e o Tocantins, Vieira atendia ao espiritual e ao secular. A luta entre
ele e os colonos, que queriam utilizar os índios como escravos, durará toda a
permanência do padre jesuíta na ilha de São Luís. A propagação da fé entre os
colonos e as lutas políticas dividiam o maior sermonário da época, ou, para mim
e muitos outros, o maior orador sacro em língua portuguesa e da literatura
universal.
Sairá expulso do Maranhão em 1661. O povo
revoltado, com espadas, tochas e pedaços de pau, ameaçava a vida do padre.
Escreveu e pregou no Maranhão alguns dos seus mais
famosos sermões, entre eles, o dos Peixes. São Luís, naquela época, era uma
cidade de poucos milhares de habitantes. Fui buscar inspiração, além dos
sermões, principalmente nas cartas de Vieira. Li a literatura dos viajantes
estrangeiros no Brasil Colônia: Gandavo, Antonil e outros. Servi-me da História
de António Vieira, escrita por João Lúcio de Azevedo. Mas, principalmente, da
minha imaginação.
Este não é um
livro de historiador, mas de um ficcionista. No livro, só Vieira, o governador
Pedro de Melo e o padre Bettendorff são personagens históricos. O resto é
bibliografia da minha imaginação.
Sobre os
personagens do livro, anotou o escritor Alexandre Arbex: “O texto é, em sua
própria forma, um exercício de reconstituição de época, mas com um humor e
picardia que dão um sabor de ironia aos arcaísmos. A constelação dos
personagens que gravitam em torno do catequizador jesuíta apresenta uma
fantástica galeria de tipos do Brasil seiscentista. O sapateiro visionário
Manuel Gordilho e sua pobre filha Luísa, cuja cabeça descomunal seguia
crescendo confinada num elmo de ferro; o mouro Omar Zaher, que, da vertigem de
seus dois metros de estatura, concebera o projeto impossível de um dicionário
universal, tão alto e insensato quanto o desígnio de Arduíno da Babel, o falso
poliglota que erguia sua torre bíblica sem saber em que idioma falaria com
Deus; o holandês Johannses van Basselar, desertor da civilização e convertido
por amor a uma índia ao canibalismo dos nheengaíbas. Percorrendo, como um fio
tortuoso, esses destinos desolados, a história de amor de Rui Serafinho e Ana
Jacomé carrega o leitor pela mão da esperança”.
Sobre os endemoniados,
possessos e crimes de sodomia, molície, rapto de freira, entre outras
transgressões, me vali do livro “O diabo e a terra de Santa Cruz”, em que Laura
de Mello e Souza estuda os processos da Inquisição no Brasil. Os livros que li
para compor Vieira na ilha do Maranhão constituem uma larga bibliografia que
não vale a pena me estender aqui mais do que já mencionei.
Levei um ano e
meio escrevendo e reescrevendo e poderia ter levado mais tempo se não decidisse
dar um fim a uma obsessão. Cada livro que escrevo é para me livrar de uma ideia
que me assola e que só posso me livrar dela com o exorcismo da escrita. E a
minha obsessão naqueles 18 meses era o Maranhão.
Este livro não tem
um personagem principal. Vieira é o fio condutor. Vieira é o personagem que
costura, agrega e reúne toda uma comunidade. Os habitantes de São Luís, naquele
início de mundo, são os personagens principais. Os desafortunados, os abonados
senhores de tabacais, os comerciantes, as tribos indígenas, os tresloucados, a
gente miúda, as putas e apaixonados, este conglomerado de colonos e gentios é o
grande personagem do romance.
Para terminar
cito novamente as palavras de Alexandre Arbex: “A erudição e a força persuasiva
das metáforas dos Sermões atravessam as falas de Vieira de Ronaldo Costa
Fernandes, mesclam-se às palavras do seu protagonista com uma espontaneidade e
um senso de precisão que imprimem um frescor de discurso vivo às velhas
homilias do padre português. Para além do divertimento letrado, Vieira na
ilha do Maranhão oferece um retrato da dura infância de um país que parece
padecer eternamente de saudades do futuro.”
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