Edmílson Caminha
Não
é fácil escrever ficção sobre personalidades com o vulto de Camões, Cervantes,
Shakespeare, Napoleão, Einstein: o peso histórico, a importância da obra
inibem, e, muitas vezes, bloqueiam o processo criativo, a construção da
personagem, o desenvolvimento do enredo. Louvem-se, pois, a coragem e a
determinação de Ronaldo Costa Fernandes, autor de Vieira na Ilha do Maranhão (Rio de Janeiro : 7 Letras, 2019),
romance admirável, um dos melhores da literatura em língua portuguesa, nos
últimos tempos. Recria, com força humana e grandeza de estilo, os oito anos
vividos pelo Padre Antônio Vieira no estado do Maranhão e Grão-Pará, entre 1653
e 1661. Não se trata, porém, de “romance histórico”, acadêmico no mau sentido
da palavra, mas de história romanceada, com o brilho, a competência e o saber
de mestres do gênero, como Erico Verissimo, Agripa Vasconcelos, Ana Miranda e
Josué Montello, este conterrâneo maranhense do autor.
A
gênese do romance é pitoresca: em Lisboa para uma feira do livro, Ronaldo
entrevê, entre milhares de títulos, um do angolano Pepetela, sobre a presença
de Vieira na África (embora não houvesse o jesuíta posto os pés no continente).
Retorna depois à estante e não o acha; pergunta a vendedores, vai a
livrarias... e nada, notícia nenhuma da obra que tinha a certeza de que vira.
Esquece-a, mas a pergunta volta a provocá-lo: e o livro de Pepetela...? Para
ver-se livre da quase obsessão, resolve: se o angolano não escreveu sobre
Vieira na África, ele escreverá sobre o padre no seu Maranhão, pelo que lhe
somos gratos, tamanha a beleza da história que nos conta.
A
partir da excelência da linguagem, com um quê de setecentista, de ressonância
barroca, sem a tentação de imitar o estilo da época, que levaria o autor a
lamentável pastiche. Veja-se, como ilustração:
O
tempo é a imagem móvel da eternidade, dissera Platão. Aquela teoria seduzia
Vieira porque cabia bem a Deus e à criação do mundo. A eternidade era divina, o
tempo era secular. Deus era a eternidade. Adão poderia viver o tempo divino,
mas decaiu e Deus criou o tempo. Deus criou o homem, depois da Terra, e colocou
o tempo para dar mais perfeição àquilo que ele fez. O tempo é volátil, duplo,
cópia semelhante da essência de Deus.
Personagens são magistralmente compostos:
os inacianos Vieira, Bettendorff e Carcavaz; António Porqueiro, prático de
adivinhações pelas vísceras dos porcos que lhe davam dinheiro; Olegário, que
com eles copulava para a geração de monstros, metade gente, metade bicho; Bento
Maciel, devorado na prisão por um basilisco, animal feroz e desconhecido;
Mariana, que pariu um rato; a filha do sapateiro, Luzia, com um elmo na
cabeçorra que não parava de crescer; Caga-Osso, holandês que se entregara à
antropofagia; Arduíno da Babel, pretenso poliglota, construtor de uma torre que
o levaria a falar com Deus, não sabia em que língua. Criações dignas do melhor
García Márquez.
A
desafiar o romancista, a reconstituição de uma época, quanto aos costumes e
hábitos das pessoas que nela vivem. Lembro-me do que me contou Rachel de
Queiroz, a propósito do seu também magnífico Memorial de Maria Moura. Ao dizer que um jagunço caçara no embornal
o fósforo para acender o cigarro, imediatamente lhe ocorria a dúvida:
cangaceiros usavam fósforo nas profundezas da caatinga? Também assim Ronaldo
Costa Fernandes, obrigado à pesquisa histórica para saber como funcionava a
máquina de confissão para torturar prisioneiros; que à mesa se comia pão de
mandioca, não de trigo; que nos prostíbulos se tocavam charamelas e flautins.
Em uma cena de canibalismo, o rigor histórico se enriquece pelo talento com que
é narrada:
Os mais gordos são os mais apetitosos e
desejados, deixando escorrer na grelha a gordura que, salgada, é um acepipe
único. Depois de tudo colocam o corpo do prisioneiro para retirar os pelos, que
são obviamente muito odiados e dificultam a degustação. Lavam com água quente.
Muitos preferem não temperar. Em seguida, cortam em pedaços. Há quem prefira as
entranhas. O fígado é por demais apreciado. O coração o disputam por ser o
centro da máquina do corpo e ter fama de dar coragem a guerreiro.
A par da castidade de Vieira, a quem, lê-se,
faltavam os testículos, um substancioso conteúdo erótico permeia o romance.
Praticamente todas as mulheres dão-se à infidelidade conjugal, ao gozo de cama,
à fornicação com desembargadores e almotacés, como se coisa mais prazerosa não
houvesse a fazer naquele fim de mundo. Meninos nascem de dois meses e outros de
mães engravidadas por um dedo. Em diálogo entre sogro e genro, o verbo forte se
enobrece pela segunda pessoa do plural:
‒ Quero que vós consumais o matrimônio com
minha filha.
‒ E não estamos casados?
‒ Em linguagem do poviléu, quero que a
fodais e me deis um neto.
E ante a resistência do marido:
‒ Escutai aqui, médico de merda, ou fodeis
minha filha ou morrereis junto com os pustulentos que têm mais atenção de vossa
parte que o cono de minha Firmina.
Conta
José Saramago que, ao atravessar uma rua no Rio de Janeiro, viu em uma banca de
jornais a manchete “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, que lhe inspirou um dos
seus grandes romances. Em Lisboa, Ronaldo Costa Fernandes deparou em uma feira
de livros com obra inexistente do africano Pepetela. Bendita visão, que nos
possibilita ler Vieira na Ilha do
Maranhão, romance que engrandece a ficção brasileira e honra a literatura
em língua portuguesa.
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