domingo, 16 de outubro de 2022

A tarde, poema

 



 


 

 

 

A tarde está sempre atrasada.
Em sua idade madura,
os corpos já estão corruptos
de matéria ordinária.
Em sua infância,
é apenas um torpor,
digestão do tempo.
 
O coveiro que lhe dá
a pá de cal negro
a silencia com constrangimento.
Ando com uma tarde
no bolso para eventuais encontros.
 
Na noite, o sol nasce para os outros.
Fiat Light disse um Deus canadense
e nos deu a companhia
por muitos anos no século passado.
 
Para onde vai a tarde
com sua girândola laranja,
fenecendo de fragrância humana
e desespero da Ave Maria
orai por nós
e pelo monóxido carbono que nos incensa?
Todas as tardes borbulham
e serenam o calor
penitenciário do trabalho.
 
A tarde tarda,
a manhã amanhece,
a noite anoitece.
O coração arde,
a razão conhece
e o corpo tece.
 
Flaubert dizia que se sentia viúvo de sua juventude.
O olho alpino observa
o viúvo peripatético
escondendo-se nas sombras das calçadas.
As pedras portuguesas
são olhos quadrados que se pisa sem olhar.
O poente é testemunha do cônjuge
que fomos.
Um cativeiro
com suas portas abertas
se oferece a quem já se nega
a liberdade
ou o medo do cárcere ao ar livre.
Tarde e manhã: duas irmãs siamesas
ligadas pelo ventre do dia.
 
 
 
 

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