sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Bolsos, poema

 


 

 


 

 

 

Trago nos bolsos um pedaço de vida.

Um troço pequeno, virulento, mas dócil.

Às vezes me corrói,

penso que pode me escapar.

Outras vezes, rumina memórias,

anúncios antigos, brincadeiras na fábrica abandonada.

A maior invenção da humanidade

foi o bolso, dizia meu pai.

Meu pai não era filósofo.

Era alfaiate de leis.

Eu costumava costurar letras,

mas eram muito pequenas

e difíceis de pregar no tecido da vida.

Mas não desisti.

Alguns poemas nasceram para serem amassados.

Os bolsos se avolumam durante o dia.

Eu diria que o homem são seus bolsos,

e, mais ainda, mais além das circunstâncias,

o homem se veste de bolsos,

todo o homem é um grande e díspare bolso.

À noite dormem no silêncio dos vácuos.

Na vesícula dos bolsos,

o homem pode sonhar.

No apêndice dos bolsos,

o homem é uma excrescência.

De repente, sinto

que me transformo num bolso.

Que ando pela cidade

como se fosse somente

um carregamento de coisas.

Inflo, contorço-me,

todos os segredos me engordam.

Ou então desfaço-me de tudo.

Minhas roupas não podem me fornecer.

Não guardo nada em mim.

Minha memória,

que é um bolso cinzento,

não me oferece nenhum abrigo.

Busco por um número telefônico,

um verso perdido, um bilhete de socorro,

e o bolso cinzento

se recusa a guarnecer-me.

Ando por ruas movimentadas,

rostos estranhos e sisudos

se recusam ao reconhecimento.

Olho-me numa vitrine

e o vidro balança

a cabeça negando-me bolso.

Meus sapatos,

que são outra espécie de bolso,

mas que não carregam nada além de metros,

se recusam a reconhecer meus passos.

Desarrazoados, iníquos, vazios e torpes,

os bolsos abrem-se em abismos.

São rudes, perversos,

diluídos, devassos e difusos.

Há um carrossel de impurezas

que rodam sob o realejo

mecânico e dentado

indiferente ao sopro do improviso.

Uma casa também pode ser um bolso.

A minha é larga,

respira pouco,

e mergulha na ânsia perdida

de tudo preencher.

O bolso da casa

está cheio de memórias

e não posso caminhar entre tantos objetos

que se acumulam

na algibeira dos tempos.

O bolso,

a cada dia que passa,

mais se acumula.

Não sei em qual dos dois

bolsos da casa me encontro:

se no largo e bojudo

espaço do passado,

ou se na edícula do presente

que perverte os sentidos

e manipula a realidade.

Haveria diferença

para o bolso da casa

e o bolso do trabalho,

minúsculo, preso ao peito,

respirando suas batidas ordinárias?

O bolso do trabalho

está cheio de rostos fabris.

Enérgicos, fluidos,

vagos, semidesconhecidos,

todos circulam

pelo bolso com suas obrigações

administrativas,

entram nos becos das salas,

circulam pelos corredores

e artérias de um coração sem sangue.

 

 

 

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