quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O Anjo Pornográfico por Fábio Coutinho





O título é, evidentemente, extraído da caudalosa biografia escrita por Ruy Castro, livro à altura do biografado e de sua obra magistral. Nelson Rodrigues nasceu no Recife, em agosto de 1912, mas foi para o Rio ainda menino, no meado da década de 1920, acompanhando o pai, o combativo jornalista pernambucano Mário Rodrigues, então necessitado de novos ares profissionais.

Logo depois de instalado na Capital Federal daqueles tempos, Mário fundou mais um periódico, Crítica, e foi nele que Nelson deu os passos iniciais de uma carreira que se estenderia por cinco virtuosas décadas. Visceralmente homem de jornal, cronista torrencial, teatrólogo de primeira grandeza, frasista imbatível ("O dinheiro compra até amor sincero" e centenas de outras pérolas), personagem do Rio e do Brasil, Nelson Rodrigues teve a vida marcada pela tragédia, que se manifestou cedo, ao fazê-lo presenciar, na redação do jornal do pai, o assassinato do próprio irmão, o também jornalista Roberto Rodrigues. A culminância trágica foi o nascimento de uma filha cega, sobre quem Nelson produziu as páginas tocantes de um dos livros mais belos (e tristes) da Literatura Brasileira, o memorialístico A MENINA SEM ESTRELA.

A confecção teatral de Nelson Rodrigues o situa no topo da dramaturgia mundial contemporânea, sendo ele amplamente reconhecido, com a admiração incontida que nos é característica, como o "Shakespeare brasileiro". VESTIDO DE NOIVA, BEIJO NO ASFALTO e BONITINHA MAS ORDINÁRIA são alguns dos célebres títulos de suas peças imortais, muitas levadas para o cinema, sempre interpretadas pelos mais importantes atores e atrizes de nosso país. Nelson é autor, ainda, de um romance de tintas fortes, O CASAMENTO, em que faz picadinho da outrora sólida instituição matrimonial.

Nelson Rodrigues também cultivou, por toda a existência, a paixão futebolística, traduzida em amor incondicional ao Fluminense Futebol Clube e à Seleção Brasileira. Dedicou-lhes crônicas impagáveis, reunidas, pela Companhia das Letras, em três livros literariamente saborosos, O PROFETA TRICOLOR (Cem Anos de Fluminenese), À SOMBRA DAS CHUTEIRAS IMORTAIS e A PÁTRIA EM CHUTEIRAS. Do time de seu coração, Nelson chegou a dizer que se tratava do único verdadeiro tricolor, os outros eram apenas equipes de três cores...

O centenário de Nelson Rodrigues, que faleceu na véspera do Natal de 1980, aos 68 anos de idade, é um dos pontos mais altos de 2012 no panorama da cultura brasileira, merecedor de todas as comemorações programadas e mais alguma coisa.



FABIO DE SOUSA COUTINHO, advogado e bibliófilo, é membro titular do PEN Clube do Brasil e do Instituto Histórico e Geográfico do DF.



segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Jorge Amado por Fábio Coutinho


Três vezes cem

O ano de 2012 assinala três grandes centenários na Literatura Brasileira: os de Jorge Amado, Lúcio Cardoso e Nelson Rodrigues, todos amplamente merecedores das intensas comemorações que se podem antever. Neste artigo, cuidarei do escritor que nasceu primeiro, naquele longínquo agosto de 1912.

O baiano (de Itabuna) Jorge Amado iniciou muito cedo sua trajetória de consagração literária, publicando três livros em torno dos 20 anos de idade: O País do Carnaval, em 1931, Cacau, em 1933, e, no ano seguinte, Suor. Depois de Macambira, o herói de Rei Negro, de Coelho Neto, que é de 1914, a primeira grande figura de negro a sair viva de carne e alma das páginas de um romance só o faria em 1935, com Antônio Balduíno, a personagem principal de Jubiabá, o quarto romance de Jorge, livro que foi recebido com entusiasmo pela crítica e pelo público. O autor tinha, então, apenas 23 anos!

A partir daí, além da constante colaboração em jornais e em revistas literárias, Jorge Amado passou a atuar politicamente, como militante do Partido Comunista Brasileiro, circunstância que o levou várias vezes à prisão, antes e durante o Estado Novo. No plano da escrita, sua atividade era incansável, sem perda de qualidade: depois de Jubiabá, vieram Mar Morto (1936), Capitães da Areia (1937), ABC de Castro Alves (1941) e O Cavaleiro da Esperança (1942). Nos dois últimos, biografou e homenageou, respectivamente, seu mais ilustre conterrâneo, o poeta dos escravos, e o ídolo político de sua juventude, Luiz Carlos Prestes.

Jorge Amado produziu ficção da boa enquanto os olhos lhe permitiram, e, no fim da vida, ainda pode publicar um esboço (a que chamou de apontamentos) de suas memórias, intitulado Navegação de Cabotagem. Na mirada certeira de Alberto da Costa e Silva, "só aos inteiramente perversos e canalhas Jorge Amado nega a simpatia - por que não dizer o carinho ? - com que desenha os que figuram em seus romances. Cada um deles tem, ao menos uma vez, um gesto doce ou uma palavra de bondade, ainda que, às vezes, envoltos pela atmosfera de farsa". Em 1961, foi eleito, por unanimidade, para a Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira que tem José de Alencar por patrono e Machado de Assis por fundador. Nada mais justo e apropriado.

Jorge Amado faleceu em Salvador, em 6 de agosto de 2001, a poucos dias de seu aniversário de 89 anos. Deixou uma imensa legião de leitores órfãos e de admiradores incondicionais da grandiosa aventura vital do artista brasileiro que sempre honrou e dignificou a condição humana, contrapondo-se, invariavelmente, à banalidade do mal.





FABIO DE SOUSA COUTINHO, advogado e bibliófilo, é o titular das cadeiras nº 21 da Academia de Letras do Brasil e 74 do Instituto Histórico e Geográfico do DF.



terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Mitologia, poema de Alberto Bresciani




O muro não me libertará
(sei porque sou tempo)

Conhecendo também
suas entranhas, armadilhas
saliências e entraves

eu o escalo
até o alto
onde ameias são faces tantas
e arranham ou assaltam
a vida

Lá, debruço-me
pendo, estico-me
jogo as mãos
a pele

e mesmo que não encontre
matéria de igual trama
ainda tenho

céu, vento, ar
ou desejo e dúvida e ilusão

Este (é um murmúrio)
o meu plano de voo
ramo de salvação

Sim, no relume das horas
arranco uma ou outra
de suas plumas e
do cimo
sinto

o doce estrépito
de um corpo
que arde e responde
                sob o meu.


(do livro Incompleto movimento, Rio de Janeiro: José Olympio, 2011)

Alberto Bresciani nasceu em 4 de julho de 1961, no Rio de Janeiro. Está radicado em Brasília há vinte e três anos. É magistrado e poeta. Com Incompleto movimento, Bresciani estreia de forma madura e promissora.

imagem retirada da internet: twoblocks.blog

domingo, 20 de novembro de 2011

Poema de Wislawa Szymborska



PI




O admirável número pi:
três vírgula um quatro um.
Todos os dígitos seguintes são apenas o começo,
cinco nove dois porque ele nunca termina.
Não se pode capturá-lo seis cinco três cinco com um olhar,
oito nove com o cálculo,
sete nove ou com a imaginação,
nem mesmo três dois três oito comparando-o de brincadeira
quatro seis com qualquer outra coisa
dois seis quatro três deste mundo.
A cobra mais comprida do planeta se estende por alguns metros e acaba.
Também são assim, embora mais longas, as serpentes das fábulas.
O cortejo de algarismos do número pi
alcança o final da página e não se detém.
Avança, percorre a mesa, o ar, marcha
sobre o muro, uma folha, um ninho de pássaro, nuvens, e chega ao céu,
até perder-se na insondável imensidão.
A cauda do cometa é minúscula como a de um rato!
Como é frágil um raio de estrela, que se curva em qualquer espaço!
E aqui dois três quinze trezentos dezenove
meu número de telefone o número de tua camisa
o ano mil novecentos e setenta e três sexto andar
o número de habitantes sessenta e cinco centavos
a medida da cintura dois dedos uma charada um código,
no qual voa e canta descuidado um sabiá!
Por favor, mantenham-se calmos, senhoras e senhores,
céus e terra passarão
mas não o número pi, nunca, jamais.
Ele continua com seu extraordinário cinco,
seu refinado oito,
seu nunca derradeiro sete,
empurrando, arf, sempre empurrando a preguiçosa
eternidade.


Tradução: Carlos Machado (poeta de alto nível que mantinha o site Algumas Palavras)


sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Lusofonia, Isabel Fernandes






Adelto Gonçalves é escritor, jornalista, professor e colaborador assíduo em publicações no Brasil e em Portugal, nomeadamente no As Artes entre As Letras. Doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa e mestre na área de Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana, nasceu em 1951, em Santos, São Paulo (Brasil). Recentemente foi convidado para assessor cultural e de imprensa do Centro Lusófono Camões da Universidade Estatal Pedagógica Hertzen, de São Petersburgo, Rússia, e foi nessa qualidade que respondeu por e-mail (e por isso foi respeitada a ortografia brasileira) à entrevista que pretendeu entender melhor o papel do Centro na divulgação do Português naquele país e como é que Adelto Gonçalves entra na história do organismo russo.

Quantos autores de Língua Portuguesa estão traduzidos pelo Centro Lusófono Camões? E quantas obras?

Logo depois de sua fundação em 1999, o Centro Lusófono Camões, da Universidade Estatal Pedagógica Hertezen, de São Petersburgo, produziu uma edição eletrônica dos Sonetos de Camões, que teve prefácio da professora Maria Raquel de Andrade e contou com o apoio dos professores José Manuel Matias, Zélia Madeira, Rogério Nunes, Alexandra Pinho e Madalena Arroja, do Instituto Camões, de Lisboa. Desde então, publicou vários livros impressos, como o Guia de Conversação Russo-Portuguesa Contemporânea, Poesia Portuguesa Contemporânea (2004), que reúne poemas de 26 poetas portugueses traduzidos com participação de Helena Golubeva (como tradutora-tutora), e Vou-me embora de mim (2007), do poeta português Joaquim Pessoa, todos em edição russo-portuguesa. O Centro tem ainda preparado à espera de apoio financeiro para publicação um livro de contos do escritor português Gonçalo Tavares, que contou com a participação do próprio autor. Além do Instituto Camões, o Ministério da Cultura, o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, o Colégio Universitário Pio XII, a Universidade Clássica de Lisboa, a Universidade Internacional de Lisboa, a Universidade Lusófona e a Universidade de Aveiro são algumas das instituições culturais portuguesas que têm cooperado com o trabalho dos lusistas russos. De autores brasileiros, publicou, com o apoio do Ministério das Relações Exteriores do Brasil e da Embaixada brasileira em Moscou, os livros Contos, em 2006, e Contos Escolhidos, em 2007, ambos de Machado de Assis (1839-1908), em edições bilíngues, que contam com prefácios de minha autoria. Até então, da obra de Machado de Assis só os romances Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro haviam sido traduzidos para o russo. Por enquanto, há outros projetos de lançamentos em edição bilíngue à espera de apoios financeiros de entidades culturais tanto de Portugal quanto do Brasil.

Como vê este interesse dos russos pela Língua Portuguesa?
É gratificante saber que há pessoas de outros países que admiram a nossa Língua a ponto de quererem estudá-la e aprendê-la. Por isso, é nossa obrigação estimulá-las e procurar oferecer melhores condições. Por enquanto, o Centro Lusófono Camões depende, praticamente, da colaboração do Instituto Camões, de Lisboa. Por isso, vamos procurar sensibilizar algumas instituições brasileiras, como a Academia Brasileira de Letras (ABL), a Academia Brasileira de Filologia (Abrafil), a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ) e algumas editoras de grandes universidades brasileiras a colaborar com o Centro não só com a doação de livros de autores brasileiros e de crítica literária, mas com a assinatura de acordos de publicação de livros em edição bilingue russo-portuguesa.

O que significa mais para o maior e melhor conhecimento dos autores que escrevem em Língua Portuguesa, o contacto com a obra (traduzida) ou o conhecimento da língua?
Todos os autores escrevem com a esperança de que sejam lidos pelo maior número de pessoas. Não há autor que não se sinta realizado ao ver a sua obra traduzida em outro idioma. Por isso, as duas coisas são importantes. Para o leitor estrangeiro, a oportunidade de uma edição bilíngue é única, pois facilita o aprendizado. No Brasil, tenho recebido algumas consultas de pessoas interessadas em aprender o idioma russo e que gostariam de ter acesso às edições bilíngues do Centro Lusófono Camões. Por outro lado, durante minha visita a São Petersburgo, tomei a iniciativa de levar e doar vários exemplares da última edição brasileira do livro Gente Pobre (Taubaté-SP, Editora Letra Selvagem, 2011), de Dostoievski, por gentileza do editor Nicodemos Sena, que também é escritor. Com isso, os estudantes de português do Centro têm também a oportunidade de confrontar a tradução de Dostoievski para o português. Além disso, o Museu Dostoievski, de São Petersburgo, colocou um exemplar da edição brasileira de Gente Pobre em lugar especial para que seja visto pelos visitantes, que são dezenas todos os dias.

A cooperação entre o Centro Lusófono Camões e instituições portuguesas é essencial para o desenvolvimento do Centro? E não seria uma mais-valia que essa cooperação se alargasse a instituições de outros países lusófonos?
De fato, essa colaboração tem, praticamente, limitado-se ao apoio de instituições portuguesas. Por isso, estamos procurando sensibilizar a Academia Brasileira de Letras e outras instituições que participem dessa cooperação. Infelizmente, no Brasil, não existe ainda um organismo como o Instituto Camões, de Portugal, que financia a publicação de obras de autores portugueses no exterior. Tanto que foi a Embaixada do Brasil em Moscou que assumiu as despesas com a gráfica para a edição dos dois livros de Machado de Assis publicados pelo Centro Lusófono.

O que significou para si este convite? Em que consiste exactamente o seu cargo?
Na verdade, o meu cargo é apenas informal. Antes de mim, Dário Moreira de Castro Alves (1927-2010), que foi embaixador em Portugal de 1979 a 1983, sócio-honorário do Centro, fazia esse trabalho de divulgação, publicando artigos sobre as atividades da instituição em jornais e revistas do Brasil e Portugal. A pedido do professor Vadim Kopyl, diretor do Centro, estou procurando ajudar o Centro Lusófono Camões a difundir a Língua Portuguesa na Rússia. Além de professor universitário e jornalista profissional há 40 anos, sou escritor e resenhista de livros. Desde que voltei da Rússia, já escrevi recensões de todos os livros impressos publicados pelo Centro e as espalhei por jornais, revistas e sites do Brasil, de Portugal e dos países de expressão portuguesa, com o objetivo, em primeiro lugar, de tornar mais conhecido o trabalho do Centro. Além disso, sempre que o professor Kopyl quiser ou tiver alguma novidade a respeito do Centro, estarei pronto a transformá-la em notícia e distribuí-la para jornais, revistas e sites de expressão portuguesa. De minha parte, também tenho o interesse em que o meu livro Bocage: o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003) venha a ser traduzido e publicado em russo, mas isso depende também de quem financie a publicação. Já entrei em contato com o Instituto Camões e, na época adequada, vou submetê-lo à apreciação do órgão.

Traçou objectivos para o seu 'mandato'? Quais são?
Os meus objetivos resumem-se em auxiliar, na medida do possível, a difusão da Língua Portuguesa na Rússia. E a divulgar as atividades do Centro entre os países de expressão portuguesa. Para tanto, conto também com a ajuda de alguns intelectuais dos países africanos de expressão portuguesa, que têm contribuído para a divulgação das resenhas dos livros editados pelo Centro, entre eles Nataniel Ngomane, João Craveirinha e Josué Bila, de Moçambique, e o jornalista Timothy Bancroft-Hinchey, editor em Lisboa da edição em português do site do Pravda. Aliás, quem quiser ler as minhas recensões dos livros editados pelo Centro e demais informações sobre a entidade deve acessar o site http://port.pravda.ru Conto também com o apoio do As Artes entre As Letras.

Como é que o Centro Lusófono Camões está a lidar com o Acordo Ortográfico? Que grafia estava a ser seguida?
O Centro entende que os estudantes devem conhecer como era a ortografia antes do Acordo Ortográfico e como é a atual, recomendada também pelo Instituto Camões.

A propósito, tem uma posição sobre o assunto?
Sou francamente favorável ao Acordo Ortográfico e acredito que, desta vez, temos um acordo que tem tudo para dar certo. Precisamos entender que ninguém é dono da língua, ou seja, seus donos são seus usuários, vivam onde viverem. Somos mais de 230 milhões de indivíduos que se orgulham de se comunicar em português, entre os quais, mais de 180 milhões de brasileiros, além, naturalmente, de grande número de indivíduos que utilizam o idioma como segunda língua. Tendo dois sistemas ortográficos, o português não podia ser contado como língua de cultura tão amplamente expandida, pois a língua de cultura é representada por um padrão de língua escrita culta. Dessa forma, o Brasil ficava isolado dos outros sete países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) que utilizam o sistema ortográfico de Portugal. O Brasil sentirá menos as mudanças porque elas ocorreram praticamente só na acentuação gráfica e na hifenização, enquanto os outros países tiveram de abrir mão de numerosas letras que só eram utilizadas por força da origem das palavras, sem qualquer amparo na pronúncia (ou na fonética). Portugal teve a grandeza de aceitar essas mudanças, pois, afinal, os brasileiros constituem quase 80% dessa população luso-falante – e, portanto, em tese, é compreensível que os restantes 20% se “sacrifiquem” mais. Por isso, é natural que Portugal e os demais países de expressão portuguesa sintam mais as mudanças. Além disso, nos países africanos e no Timor Leste é baixo o percentual daqueles que têm o português como primeira língua. Portanto, para quem ainda não tem o domínio da ortografia, com o novo sistema será mais fácil aprender o português do que com o anterior. Na relação internacional, é de ressaltar que teremos a nossa língua (unificada) oficializada na Organização das Nações Unidas, que hoje reconhece a Língua Portuguesa com as regras de escrita observadas só em Portugal e nos demais países de língua oficial portuguesa (Palops). Com a língua unificada, haverá ainda maior possibilidade de ampliar o Ensino a Distância (EAD) pelos sistemas virtuais. Ao mesmo tempo, haverá um significativo barateamento no custo das edições de livros, pois o mercado será ampliado tanto para as editoras do Brasil e de Portugal como também para as dos demais Palops. Também não serão necessários mais dicionários com verbetes na ortografia brasileira e ortografia portuguesa. Com o idioma unificado, será mais fácil àquela pessoa que não tem o português como língua materna aprender o nosso idioma e torná-lo a sua segunda língua.



segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Cabrita e o futuro da lusofonia, Adelto Gonçalves

LETRAS AFRICANAS





A África não dorme. Vive em eterna vigília. Essa é a metáfora que explica A maldição de Ondina, do português-moçambicano António Cabrita (1959), livro que tem tudo para empolgar o leitor brasileiro não só por suas qualidades literárias como pelas marcas de várias culturas afins ao Brasil que impregnam suas páginas. Como toda boa metáfora, o título A maldição de Ondina tem duplo sentido. Ou seja, explica o fenômeno que faz parte da natureza intrínseca dos golfinhos, mamíferos que não podem dormir jamais, já que, para sobreviver, necessitam vir à tona de cinco em cinco minutos para respirar. E, portanto, não podem esquecer a condição em que vivem, sob o risco de desaparecerem.

Não se pode esquecer que a referência à Ondina, ninfa das águas na mitologia germânica, serve também para qualificar uma rara síndrome – em 2006, havia apenas 200 casos conhecidos no mundo –, cujas formas graves exigem que a pessoa receba ventilação mecânica 24 horas por dia. Ou seja: vigília ininterrupta.

Mas explica também o sentir e o estar africano ao longo dos séculos. Um povo – feito de muitas nações, etnias e tradições milenares – que está condenado à permanente vigilância, diante daqueles povos que se mantêm sempre à espreita para espoliá-lo, como fizeram os europeus por séculos a fio. E, agora, ao que parece, fazem os chineses, os colonizadores do século XXI, que estão a explorar as florestas do Norte de Moçambique até o ponto de transformá-las em vasto deserto. Sem esquecer aqueles que saem do próprio povo africano – que, afinal, é resultado de muitas e distintas etnias – e que, no poder, acabam também por espoliá-lo. Mas essa não é uma característica do africano, mas da espécie humana, seja lá qual for a sua matiz de cor.

Portanto, não se quer dizer aqui que, se a África tivesse ficado imune à presença do europeu e de povos como indianos, hindus, goeses, mouros, cojás e tantos outros que a assolam desde tempos avoengos, teria tido um destino melhor. Ou que, hoje, seria um continente sem problemas, um paraíso terrenal em que Deus pudesse passear tranqüilo no jardim pela viração do dia.

Pelo contrário. É provável que estivesse imerso em mais obscurantismo, ao menos sob o prisma da visão eurocêntrica que nunca iremos perder. Não é isso o que se contesta aqui: até porque essa é uma opção irremediavelmente perdida na História. E que remete ao lamento do poeta Manuel Bandeira (1886-1968) sobre a vida que podia ter sido – e que não foi.

A África é o que é hoje. E ponto final. Entrecruzamento de raças e etnias, suas mazelas – a miséria de muitos povos, a falta de perspectivas para muitos, a opressão de uma classe sobre outras – são iguais às de todos os homens que vivem na Terra – uns mais, outros menos. Uma espécie de Brasil nenhum pouco às avessas. Se aqui o partido que se dizia de esquerda e defendia os oprimidos chegou ao poder pelas vias da democracia chamada burguesa e, naturalmente, não o quer largar, ainda que tenha de recorrer a meios inconfessáveis, ao estilo das antigas máfias napolitanas, lá o partido dos oprimidos, a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), alcançou o poder pela força das armas, depois de ter, primeiro, colocado o colonialismo para correr e, em seguida, em meio a anos de contendas e mortandades, destruído pelos fuzis adversários que tinham os mesmos objetivos.

No poder, num congraçamento entre “marxistas-leninistas arrependidos” e oportunistas incrustados nas máquinas partidárias, tanto lá como cá, os partidos e seus dirigentes logo esqueceram os miseráveis que tanto defendiam, deixando-se levar pelas delícias do dinheiro fácil das grandes corporações nacionais e internacionais, que, afinal, ninguém é de ferro e a vida é uma só e tem de ser vivida à larga, ainda que à custa da dilapidação do patrimônio público, da corrupção generalizada, do gangrenamento da vida da nação e da destruição dos bens naturais do país. Tudo em troca de “consultorias”, “sobras de campanhas” ou “numerário não contabilizado”, conhecidos eufemismos brasileiros para a maldita taxa de corrupção e outras formas de enriquecimento ilícito. Obviamente, sempre revestidas por “bazófias patrióticas”, como diria o autor.

É o que se pode sentir neste romance de Cabrita, um retrato de uma África pouco conhecida no Brasil, mas facilmente reconhecível, que se desenha na vida de meia-dúzia de personagens: César, luso-moçambicano, professor e escritor de romances policiais; Raul, amigo de César, policial; Beatriz, mulher de César e professora universitária na área de Literaturas Africanas; Argentina, concubina de César por dez anos e gestora numa ONG; Aurora, antiga ama-seca de César e sua cozinheira; e Filipa, irmã de César e médica. Além de outros personagens secundários apenas citados, como a famosa atriz Rita Hayworth (1918-1987), estrela de Gilda (1946), que, entre outros casamentos, viveu com o príncipe Aly Khan, de 1949 a 1953, num palácio na Ilha de Moçambique, para quem, no romance, Aurora – provavelmente, macua ou maconde – teria prestado serviços culinários.

Por trás de tudo, um pano de fundo facilmente reconhecível: uma estrada de terra batida é aberta só para que presidentes (das câmaras) de duas cidades e secretários do partido se visitem; um presidente da câmara de Maputo é atropelado de modo acidental, mas ninguém acredita na versão oficial; enfim, crimes que nunca se explicam, como aquele com o qual o policial Raul se vê às voltas com investigações a respeito de pessoas que desviaram dinheiro para o partido, mas para os quais o partido volta as costas. Como nesse tipo de regime o agente policial anda sempre sobre o fio da navalha, dependendo das facções que estão no poder, Raul trata de colocar as barbas de molho, pois teme que o seu fim possa estar próximo. E pede a César, que nunca teve filhos, que leve o seu “miúdo daqui para fora”, pois não quer que fique com a mãe, em Quelimane, pois “isso seria condená-lo a uma vida medíocre...”.

II

Observador arguto do linguajar moçambicano, Cabrita constrói os diálogos com fidelidade à oralidade, o que permite suspeitar que, em pouco tempo, o idioma de Camões estará totalmente substituído pelo de Shakespeare não só em terras que foram do sultão Mussa Bin-Mbiki como em todo o antigo e vasto império Monomotapa e nas antigas terras do reino do Ndongo, cobrindo todo o “mapa cor-de-rosa” imaginado, um dia, pelos colonialistas lusos. Até porque a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), como organismo internacional, não passa de uma bela fantasia. E, até prova em contrário, pouco faz em defesa da lusofonia. Que o digam os rebeldes da Casamansa, província do Senegal, que desde 1982 empreendem uma inglória guerra de guerrilha para se livrar da opressão do governo de Dakar e virar país independente na órbita da CPLP.

Cabrita nasceu português de quatro costados, pois é do Pragal, freguesia do concelho de Almada, cidade do distrito de Setúbal, que fica à entrada do rio Tejo, em frente a Lisboa. Mas, como muitos de seus ascendentes, achou de tentar descobrir na África, não a árvore das patacas dos quinhentistas, porém outra maneira de viver. Quem sabe, menos morna e asséptica, porque sob o sol africano e em meio a ameaças físicas e até contagiosas. Como gosta de viver na contramão, foi para Maputo há poucos anos, a uma época em que raros lusos se dispõem a ir para a África e os que de lá retornaram choram até hoje o “império colonial derramado”. Não se arrependeu, pois encontrou material, o chamado “tecido da vida”, para escrever novas e surpreendentes histórias como estas que o leitor brasileiro tem a oportunidade de conhecer.

III

O que se lê neste romance, para quem conhece a vida nas favelas e subúrbios das grandes e médias cidades brasileiras, não haverá de surpreender. Talvez uma ou outra expressão autóctone que o escritor esclarece devidamente em notas de rodapé. Um personagem era bem visto pela comunidade porque colocara a filha a estudar – já estava na 11ª classe –, ainda que o seu verdadeiro negócio fosse o tráfico. Outro, que exibia uma cara da ratazana, tinha duas mulheres e nove filhos e vivia de biscates. Um terceiro, professor primário, fora abandonado pela mulher, depois de tê-la espancado até quase à morte, com oito meses de gravidez, por causa de ciúmes do pastor.

Em meio a uma natureza paradisíaca, a violência doméstica é corriqueira em algumas aldeias, onde o isolamento parece enlouquecer os homens. “As pessoas catanavam-se à primeira, por medo, cativos. À mínima tensão o marido acusava a mulher de feitiço e a família dele acabava por cataná-la, a cobro da noite (...)”, diz Beatriz. Catanavam-se, ou seja, cortavam-se com facão.

O estilo de Cabrita é de fácil e envolvente leitura, ainda que os capítulos em flash nem sempre permitam acompanhar o foco da narrativa ou o fio-condutor da trama com facilidade, exigindo novas e detidas leituras. O texto, porém, vale por si mesmo, pois não deixa de explorar todas as técnicas desenvolvidas pelos grandes mestres da literatura. Com mestria, Cabrita recorre ao discurso indireto livre sempre que pode: “(...) A sua mãe, farta daqueles modos, resolvera voltar a casa e levar as crianças, advertindo-a na porta, esta gente não presta, se armarem confusão fala com o polícia do sétimo”.

A história, porém, é conduzida em torno de César, uma espécie de alter ego do autor, professor, intelectual que vive rodeado de livros, casado com Beatriz, mas que teve uma amante com o sugestivo nome de Argentina. Filho de “boa família portuguesa”, que é como se diz daquelas famílias que conseguiram amealhar um bom patrimônio e dinheiro no banco, César não hesita em chantagear o pai, em troca de que este o deixe levar consigo a amante negra para com ele estudar em Lisboa. Afinal, o pai sabe que ele sabe de sua segunda mulher, “a quem instalara casa nas Torres Vermelhas, em Maputo”. O silêncio vem “em troca de uma passagem para Argentina e de um aumento chorudo na mesada”.

Se não conseguiu entrar no curso de Direito como o pai ansiava, enquanto Argentina concluía o de Economia, César ganhou fama com seu primeiro romance policial, a que se seguiram outros. Quando se sentia secar por dentro, retornava a Moçambique em busca de reciclagem e renovação. Depois de anos com Argentina como amante, resolve casar a sério com a professora Beatriz, talvez em busca de uma união estável. Mas aqui não há como deixar de pensar que, para ele, as “pretas” só servem como amantes, ainda que Argentina seja uma mulher extremamente culta. Ranço do racismo colonialista, quem sabe. Mas, quando o casamento com Beatriz entra na fase morna, César volta a Moçambique, atrás novamente de Argentina, que, a essa altura, também voltara para a África de olho num mestrado no Zimbábue.

Quando está às vésperas de reatar com Argentina, quem sabe para finalmente constituir uma família e uma velhice tranqüila para ambos, o destino o leva para outro rumo. Por lealdade a Raul – morto numa cilada em Quelimane, provavelmente por um colega de profissão, vítima de alguma intriga política –, terá de assumir o filho do outro para colocá-lo longe da África. E garantir-lhe uma vida melhor.

Eis a metáfora de volta: na África nunca ninguém pode dormir, o que significa que não se pode esquecer o passado, essa assombração que vai aonde quer que se vá. Em outras palavras: como não podem esquecer o que lhes fizeram, os africanos não conseguem superar o ressentimento e atingir o perdão. Nem perdoar os outros nem a si mesmos. Essa é a maldição que paira sobre a África. A maldição de Ondina.

IV

António Cabrita publicou Oblíqua Visão de um Cristal num Gomo de Laranja ou Perene o Sangue que Arrebata os Anjos Vingadores (1979), Tormentas de Mandrake e de Tintin no Congo (Teorema, 2008), Carta de Ventos e Naufrágios (Teorema, 1998) e Cegueira de Rios (Relógio de Água, 1994). Parte considerável da sua obra poética está reunida em Arte Negra, livro de 2000 publicado pela Editora Fenda. Crítico literário e de cinema de 1988 a 2004 no semanário Expresso, de Lisboa é também editor das edições Íman, diretor da revista Construções Portuárias, autor de contos e argumentos para o cinema.

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(*) Posfácio do livro A Maldição de Ondina, de António Cabrita (Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2011).

E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br

Site: www.letraselvagem.com.br

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(**) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage -- o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Tatuagem, poema de Ronaldo Cagiano


Teu nome esculpido em mim
torna menor o passado
e subverte a precariedade
dos meus dias.

Palavra que reverbera em mim,

             cintila como um cometa
             descendente de longínquas eras
             para um porto seguro

ressonância de mistério
que só agora ouso comprender.

No esconso das madrugadas
procurei tua face
arraigada
no endereço dos exílios interiores.

Enfermidade com alicates de aço,
a solidão agora
é alimento dos vermes,
fronteiriça de nenhum horizonte
onde habitam soluços
condenados à eterna vida de mundo nenhum.

Tatuagem que não se desnutre
com a marcha do tempo sobre o corpo,
sua vida se inscreve no meu viver
como um rio incorporando outras vertentes.

(do livro recém-lançado O sol nas feridas, São Paulo: Dobra, 2011)

Ronaldo Cagiano nasceu em Cataguases (MG), viveu em Brasília, onde se formou em Direito e reside em São Paulo. Colabora em diversos jornais e revistas, publicando artigos e resenhas. Na última década publicou, entre outros, os livros Dezembro indigesto (contos, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária da Secretaria de Cultura do Distrito Federal, 2001) e Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral Editora, Rio, 2006).

imagem retirada da intenet: toytoy tatoon

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Afonso Henriques Neto por Fabio Coutinho

Poesia Sempre




                                                       Para Danilo Gomes



São três gerações de grandes poetas. A primeira é representada por Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), que a crítica mais exigente considera, ao lado do catarinense Cruz e Sousa, um dos nomes nucleares do simbolismo brasileiro. Na visão especializada do saudoso professor Lauro Junkes, o mineiro Alphonsus (pseudônimo de João Henriques da Costa Guimarães) foi o poeta do "amor inextinguível, do sonho místico, da suave melancolia nostálgica, da fé religiosa e mariana, do ocaso e da morte."

Pai de quatorze (!) filhos, um deles, o caçula, também foi poeta: o formidável sonetista Alphonsus de Guimaraens Filho (Afonso Henriques de Guimaraens), nascido em Mariana, MG, em 1918. Viveu longos anos em Brasília, a partir de 1961, aqui participou de diversas antologias poéticas, todas organizadas por Joanyr de Oliveira, e foi um dos fundadores, em 1963, da Associação Nacional de Escritores (ANE). Seu livro de estreia, LUME DE ESTRELAS (1940), foi premiado pela Academia Brasileira de Letras e elogiado por Mário de Andrade e Manuel Bandeira, para quem os versos do poeta de 22 anos "revelavam em grau invulgar fina sensibilidade, forte imaginação verbal e técnica segura."

Ao contrário de seu genitor, morto precocemente poucos dias antes de completar 51 anos, Alphonsus de Guimaraens Filho foi um homem longevo, falecendo em 2008, aos 90 anos de idade, na Cidade Maravilhosa. Um de seus três filhos, assinalando a terceira geração de poetas, na mesma família, é o belo-horizontino Afonso Henriques (de Guimaraens) Neto, que se destacou, inicialmente, ao figurar, em 1976, na célebre antologia 26 POETAS HOJE, marcante aventura literária de Heloísa Buarque de Holanda.

Avô, filho e neto poetas, uma famíla dedicada, geração após geração, a uma das atividades mais nobres da civilização humana, exaltada, ao longo dos séculos, pelos povos mais cultos e por aqueles que, como o nosso, também almejam o reconhecimento de suas conquistas intelectuais.

Afonso Henriques Neto, recentemente empossado na Cadeira n° 4 da centenária Academia Mineira de Letras, vem, também, de assumir a editoria geral da revista POESIA SEMPRE, da Fundação Biblioteca Nacional, sabidamente a mais importante publicação do gênero entre nós, por cuja direção já passaram poetas da estatura de Antonio Carlos Secchin, Affonso Romano de Sant'Anna e Marco Lucchesi. Além da afortunada tradição e de seus próprios e sólidos recursos poéticos, o novo editor de POESIA SEMPRE carrega no coração o símbolo vitorioso do Fluminense Futebol Clube. Nada mais lhe falta.



FABIO DE SOUSA COUTINHO, advogado e bibliófilo, é membro titular do PEN Clube do Brasil e da Academia de Letras do Brasil (ALB).

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Tomas Tranströmer, poema do Nobel


No bairro de Alfama os eléctricos amarelos cantavam nas

                                                                           subidas.
Havia duas prisões. Uma delas era para os gatunos.
Eles acenavam através das grades.
Eles gritavam. Eles queriam ser fotografados!
"Mas aqui", dizia o revisor e ria baixinho, maliciosamente,
"aqui sentam-se os políticos". Eu vi a fachada, a fachada, a fachada
e em cima, a uma janela, um homem,
com um binóculo à frente dos olhos, espreitando
para além do mar.
A roupa pendia no azul. Os muros estavam quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde, perguntei a uma dama de Lisboa:
Isto é real, ou fui eu que sonhei?



Tomas Tranströmer, tradução de Luís Costa


imagem retirada da internet

terça-feira, 4 de outubro de 2011

O editor inglês

Neil Astley
Bloodaxe editor Neil Astley. Photograph: Pamela Robertson-Pearce



Neil Astley é o editor da Bloodaxe Books inglesa, fundada em 1978. É talvez a mais importante editora de poesia na Inglaterra. Publicou mais de 300 poetas e ele se orgulha de ainda ter muito mais outros poetas, principalmente mulheres, para publicar. Nenhuma outra editora, diz ele, publica mais livros de poesia na Inglaterra.



quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Humberto Werneck por Fabio Coutinho

ESSE INFERNO VAI ACABAR



Humberto Werneck



Fabio de Sousa Coutinho

A crônica é um gênero literário que, desde Machado de Assis, sempre foi bem tratado na literatura brasileira. Pelo menos se levarmos em conta a alta qualidade dos escritores que a ela se dedicaram entre nós.

Além do imenso autor já citado, que foi cronista em paralelo a uma inigualável carreira de contista e romancista, construída na segunda metade do século XIX, o Brasil ostenta uma respeitável galeria de cronistas no século XX, com destaque maior para o capixaba Rubem Braga.

O "velho Braga" escreveu uma crônica diária ao longo de várias décadas, produzindo autênticas pérolas literárias, verdadeiros poemas em prosa, alguns deles tão arrebatadores que chegaram a se popularizar, passando a fazer parte do imaginário coletivo, como é o caso das impagáveis AULA DE INGLÊS, UM PÉ DE MILHO, O CONDE E O PASSARINHO e VIÚVA NA PRAIA.

Grandes cronistas do século passado foram, também, Lima Barreto, João do Rio, Humberto de Campos, Marques Rebelo, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector, Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Rachel de Queiroz, Otto Lara Rezende, Fernando Sabino, José Carlos (Carlinhos) Oliveira, todos igualmente consagrados em outros gêneros nobres da Literatura.

Na sucessão de tantos mestres, apareceram muitos craques, a começar pelo gaúcho Luis Fernando Veríssimo e pelo mineiro Humberto Werneck. Este acaba de lançar mais uma seleção de suas saborosas crônicas, reunidas no volume intitulado, a exemplo de uma delas, ESSE INFERNO VAI ACABAR. Nele, o cronista emerge para perenizar, com a força do humor, da emoção e do lirismo, situações vividas em diversas etapas da própria existência, além de lançar um olhar atento e curioso sobre a comédia e a tragédia do quotidiano, tornando-o menos áspero e mais humano.

Humberto Werneck, há muito dedicado ao ofício de cronista, é, também, o luminoso biógrafo do célebre Jayme Ovalle, impecavelmente (sem trocadilho) retratado em O SANTO SUJO. Cuida-se, a rigor, de uma extensa crônica de escrita superior, relato irretocável da vida de um poeta sem obra de poesia, de um compositor de pouquíssimas canções, mas uma figura carismática que despertava a veneração incontida de Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes, Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes e de mais uma penca de gente do primeiro time das letras nacionais.

No prefácio que escreveu para a coletânea de crônicas BOA COMPANHIA, de 2005, Humberto Werneck lembrou tratar-se de "um gênero tipicamente brasileiro". Já Rubem Braga, com seu agridoce bom humor, respondeu certa vez a alguém que lhe pedira uma definição do gênero: "Quando não é aguda, é crônica." O novo livro de Werneck é uma síntese perfeita das duas poderosas definições, mais um monumento de sua rara competência literária, uma delicada e bem humorada homenagem ao eterno prazer de ler.



FABIO DE SOUSA COUTINHO, advogado e bibliófilo, é membro titular da Academia de Letras do Brasil (ALB) e do PEN Clube do Brasil.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Sumária, poema de Angélica Torres


I

Passos vão
passos vêm
entre eles
nenhum meu
à porta do tempo
estancados
à espera dos rumos
vislumbrados
que o mobiliário
cerceia

II

Mas por que
insistem os poetas

em dar olhos
ouvidos e mãos

a pequenas
sincopadas

solitárias
conversas

se a ninguém
interessa

sua desútil
solidão?




Angélica Torres é uma das vozes femininas mais importantes da poesia de Brasília. Jornalista, promotora cultural, Angélica constrói sua obra entre a vocação para a dicção da sensibilidade fotográfica das emoções e o uso verbal lúdico na melhor vertente da poesia contemporânea.

imagem retirada da internet: sapatos portugal porreiro

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Lêdo Ivo por Fabio Coutinho


O VENTO DO MAR
Como costuma dizer o jornalista Elio Gaspari, há um grande livro na praça. Pesquisado, selecionado e organizado pelas mãos competentes e caprichosas de Monique Cordeiro Figueiredo Mendes, O VENTO DO MAR reúne as memórias literárias e pessoais de Lêdo Ivo, o poeta, contista, romancista e ensaísta alagoano radicado no Rio de Janeiro desde 1943. A edição, belíssima, é resultado de uma feliz parceria da Contra Capa com a Academia Brasileira de Letras, para a qual Lêdo foi eleito, por unanimidade, em 1986.
Além da primorosa seleção de textos em prosa e verso, a obra expõe um rico acervo iconográfico, refletindo as incontáveis andanças do escritor pelo Brasil e pelo mundo, viajante culto, curioso e incansável que sempre foi. As capas de seus inúmeros livros, traduzidos em vários países e nos mais diversos idiomas, também figuram na edição, permitindo ao leitor percorrer um fascinante itinerário editorial, revelador do interesse alienígena por um dos nomes centrais de nossas letras contemporâneas.
Os perfis de confrades e amigos falecidos são simplesmente irretocáveis, confirmando a sentença irrecorrível de Antonio Candido, que certa feita advertiu que "Lêdo Ivo escreve num dos estilos mais belos e originais que possuímos". A seleta de ensaios (CARTILHA DE PASÁRGADA) sobre a poesia de Manuel Bandeira justificaria um livro à parte, assim como registro especial merece a história de amor vivida pelo poeta com Lêda, companheira de mais de meio século e mãe de seus três filhos, e a respeito de quem o marido eternamente apaixonado declara: "Eu a amei desde o primeiro instante em que a vi."
Há, ainda, uma antologia poética de tirar o chapéu, intitulada OS SINOS DE MACEIÓ, justa e incontida celebração da terra natal do grande vate. Nela, estão presentes o mar e os navios, o vento e as ruas tortas, o farol desaparecido e os caranguejos dos mangues, os morcegos e o mormaço, o porto e as lagunas. E, nas palavras do próprio Lêdo Ivo, "(...) um tesouro que não está escondido nas dunas: a nossa alagoanidade, a nossa maneira de ser e estar, amar e odiar, viver e morrer. E guardamos um segredo, um mistério, um encantamento, uma alegria e uma dor que são nossos, exclusivamente nossos, de quem nasceu em nossas terras moles ou junto às nossas águas. E o nosso emblema é o vento do mar."
Da generosa varanda de seu apartamento carioca da Rua Fernando Ferrari, contemplando a indescritível enseada de Botafogo, o colossal bardo alagoano ainda aspira, décadas após a partida sem volta, o vento do mar de Maceió.




Fabio de Sousa Coutinho, advogado e bibliófilo, é membro titular do PEN Clube do Brasil e do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal.

imagem retirada da internet:

domingo, 21 de agosto de 2011

33 Motivos para um crítico amar a poesia hoje

33 Motivos para um crítico amar a poesia hoje
Livro: 33 Motivos para um crítico amar a poesia hoje
Alguns dos 33 motivos para um crítico amar a poesia HOJE: 1) Iacyr Anderson Freitas; 2) Thereza Christina Rocque da Motta; 3) José Inácio Vieira de Melo; 4) Maria Rezende; 5) Victor Colonna; 6) Ronaldo Costa Fernandes; 7) Eucanaã Ferraz; 8) Maria Dolores Wanderley; 9) Denise Emmer; 10) Joana Maria Guimarães; entre outros. ...

Autor: Igor Fagundes
Ano: 2011
Gênero: Poesia
Páginas: 214
R$ 35.00

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Antonio Carlos Secchin por Fabio Coutinho

O mundo como proposta




Após quatro décadas de magistério, as duas últimas como professor titular de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da UFRJ, Antonio Carlos Secchin acaba de anunciar sua aposentadoria do serviço público federal.
Para marcar o fato, expressivo grupo de amigos, colegas e alunos fez publicar um livro, de circulação restrita, intitulado
ESCRITAS E ESCUTAS. Na obra, editada sem o prévio conhecimento do grande mestre, figuram depoimentos e a mirada crítica de alguns nomes exponenciais da vida literária de nosso país, intelectuais da estatura de Ivan Junqueira, Cleonice Berardinelli, Sânzio de Azevedo, Cláudio Murilo Leal e tantos mais.
Mas há, também, a palavra espontânea de discípulos que, a exemplo de Flávia Amparo e Gilberto Araújo, se beneficiaram, em sua passagem acadêmica, das lições e ensinamentos de Secchin, que jamais deu uma aula sem prepará-la com a profundidade científica que gostaria de merecer, caso fosse ele o aluno. E tal rigor se reflete na qualidade e na transparente sinceridade das manifestações discentes, todas convergindo para o reconhecimento da alegria e do privilégio que consistiram em ter um professor tão culto, erudito e generoso na transmissão do saber acumulado.
Em 2004, aos precoces 52 anos, Antonio Carlos Secchin ingressou na Academia Brasileira de Letras, tornando-se, então, seu mais jovem integrante. Só muito recentemente, transferiu a honraria ao escritor Marco Lucchesi, que foi eleito para a Casa de Machado de Assis aos 48 anos incompletos.
Além de festejado docente de Literatura Brasileira, Secchin se destaca, no cenário cultural pátrio, como poeta, ensaísta e organizador de edições. Sua interpretação da obra cabralina foi considerada, pelo próprio João Cabral de Melo Neto, como a que "melhor analisou os desdobramentos daquilo que pude realizar como poeta".
No curso da vida, em paralelo a tantos afazeres e dedicações profissionais, Secchin se tornou, ao lado de seu saudoso confrade José Mindlin, um dos maiores bibliófilos do Brasil, havendo publicado um utilíssimo Guia dos Sebos, que já caminha para a sexta edição. Como lembrado pelos organizadores na afetuosa Apresentação, citando célebre passagem machadiana, "O mundo não nos é dado, o mundo nos é proposto." Antonio Carlos Secchin soube sempre dignificar, em sua trajetória de intelectual público, as diversas faces da proposta vital que recebeu, sintetizada no criativo ex libris LITERARUM VINCITUR PACE.
Deparei, nas páginas do precioso opúsculo de louvor, com referência de Cristina Secchin ao fato de o homenageado ser um apaixonado torcedor do Botafogo de Futebol e Regatas. A revelação de tal circunstância, apenas uma partícula do afeto exposto pela querida irmã, não chega a abalar a elegância da homenagem que, com plena justiça, imenso respeito e maior admiração, vem de ser prestada.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Dois poetas de Brasília

Nicolas Behr


os três poderes são um só:
o deles

nem tudo que é torto é errado
veja as pernas do garrincha
e as árvores do cerrado

SQS4115F303
SQN303F415
NQS403F315
QQQ313F405
SSS305F413

seria isso
um poema
sobre Brasília?

seria um poema?
seria Brasília?
eixos que se cruzam
pessoas que não se encontram
.....................
a cidade é isso mesmo
que você está vendo
mesmo que você
não esteja vendo nada
..................

começa a demolição
quero pra mim
os anjos da catedral
.......................
a superquadra nada mais é
do que a solidão
dividida em blocos



(poema de Braxília Revisitada, 2004)


Alexandre Pilati




auto-atestado



tenho a mesma idade de David Beckham
em criança aprendi a respeitar os mais velhos e a ter
vergonha deles
tomei alguns antibióticos, analgésicos, usei supositórios,
fantasiei aventuras
senti dores no corpo, tive uma infecção intestinal e
ganhei concursos literários na escola
fraturei o perônio, não acredito em duendes e nada
disso mudou o fato de que

tenho a mesma idade de David Beckham

nunca repeti o ano, mesmo sendo um aluno mediano
que lia pornografia e filosofia
tenho calças jeans da moda compradas em liquidações
de lojas de departamento
atendo ao telefone com cordialidade fingida quase
sempre, pois odeio telefone
dirijo com destreza impressionante e tenho horror à
canalha, o que me faz lembrar que

tenho a mesma idade de David Beckham

perdi a virgindade, fiz discursos, chorei algumas vezes
e falo da doméstica como se ela integrasse uma raça
paralela
chorar é cada vez mais difícil, agora que tenho mais
escravos e acesso rápido à www
compadeci-me dos desesperados, dos pobres, das
prostitutas e de meus CD´s e livros
nunca transei com uma puta ou cheirei cocaína mas,
mesmo inconscientemente, sei que

tenho a mesma idade de David Beckham

assisto ao futebol, à novela, ao jornal, ouço Chico e
Caetano e sou latino-americano
adoro praia e luxo, odeio gerúndios e loiras oxigenadas,
jazz e axé music
me acho normalmente mais inteligente que os outros
mesmo sabendo que sou uma besta como qualquer um
sinto-me mais limpo que o porteiro e o tumulto febril
da cidade e do cyberespaço parecem sempre me
anunciar que

tenho a mesma idade de David Beckham

creio-me brasileiro, possua uma dívida com a receita
federal e meus ideais sempre estiveram à esquerda
não jogo lixo pela janela do carro nem de casa, uso
cinto de segurança e aliança
já acreditei em Deus e no PT, hoje comporto-me bem à
mesa e isso é tudo que me basta
tenho fé no cinema nacional e assino revistas semanais
que me lembram de que

tenho a mesma idade de David Beckham

já dei jóias de presente e não sou afeito a escândalos,
mesmo sendo desabusado e cínico
sou ateu e li literatura: Drummond, Cabral, Dostoievski,
Gullar, Machado, Kafka, Rulfo, Brecht, Beckett, Neruda
nada disso basta para quem mora na asa sul, no plano
piloto, perto do eixo sul
pois sempre sinto a iminência de um terremoto capaz
de me revelar outra vez que

tenho a mesma idade de David Beckham

ando temeroso pela rodoviária às duas horas da tarde
de uma véspera de feriado
nunca vou às cidades satélites e condeno o trabalho
voluntário e o jejum
meu carro é um balão de ar condicionado singrando
ruas da capital federal às 7:00 am
prefiro a macumba à igreja evangélica para tentar
esquecer que

tenho a mesma idade de David Beckham

saberia usar como ninguém uma metralhadora se
morasse no Oriente Médio
não jogo videogame e condeno filmes violentos, mas
isso não me impede de às vezes tomar água com gás
já tive o nome negativado durante cinco anos, mas a
dívida expirou e hoje posso enganar qualquer um
grudo as melecas que retiro do nariz embaixo de minha
mesa de trabalho, onde há um aviso dizendo:

tenho a mesma idade de David Beckham

sou professor e utilizo numa boa o sistema urbano de
transportes coletivos
uma bala pode a qualquer segundo estourar em meu
peito ou em minha têmpora
e nunca terei sido entrevistado, não terei causado
loucura em ninguém, nem sequer matado alguém que
merecesse morrer
também não terei salvo nenhuma vida ainda que
queime 80% do corpo
mas sempre saberei que

tenho a mesma idade de David Beckham