segunda-feira, 30 de maio de 2011
Cimitarra, conto de Edmar Monteiro Filho
Na Espanha, na França, é possível pensar numa mulher. Na América. Pensar numa mulher significa imaginar uma criatura específica, seus olhos e dentes, seus braços, o busto, essa mulher. Na Espanha, na França, as mulheres são seres de uma foto, de palavras e modos, cada qual de um seu, como um homem. Na Espanha o ar tem um nome, as ruas e os edifícios que vi em Paris, livros com fotos de cidades da Alemanha, da Inglaterra, Dinamarcas - uns povos de gelo.
Abdelahid diz que assim serão derrotados: pelo peso de seus nomes que os esmagará quando o aço e o concreto de sua enorme herança, ambição e prepotência vierem abaixo, ou pelos ares, que já respiramos mais frios. Abdelahid não se demora ante uma questão, todo o universo ajustado ao formato do seu pensamento. Não o admiro.
Da Plaza Mayor, pela Puerta del Sol até Alcalá, este frio que as pessoas acordam tarde por isso, para que eu sinta no rosto e pense em Abdelahid e suas mais convictas falas acerca do Ocidente, enquanto olho as bigas, cavaleiros alados, o edifício do Banco de España. Sem pressa, pelas Cibeles, esse impressionante Netuno, plantado na profusão de água que só os olhos aproveitam.
Ainda se matam touros em Madri por puro deleite, ainda se mata. A comida se pede por nomes com os quais não me acostumo. É muito do que se deseja em Damasco ou Amã. Mas no deserto é mais simples não cair em contradições, é possível sonhar com sanduíches e refrigerantes.
No Paseo Del Prado a mulher pergunta se desejo visitar o museu. Respondo a essa mulher, com o nome "Isabella" impresso no crachá, essa mulher Isabella, com rosto, voz e com pernas grossas, suas mechas loiras no cabelo escuro, respondo que não e agradeço, apenas pelo seu sorriso que provavelmente não tornarei a ver - artigo barato, tanto luxo no Magreb.
Abdelahid, jamais pude trazê-lo para ver El Greco, o estrangeiro. Jamais o convidaria: tantos ícones de tinta, rostos finos de olhos para o alto, extremidades de aguda cor para louvar o Deus dos cristãos. Sem adorá-lo, ser capaz de ignorar ressurreições, anunciações, esses pastores de espanto, apenas pela contemplação. Que diria Abdelahid diante dessas luzes irreais, talvez as cores de um pesadelo seu, nas intermináveis noites sobre o Corão?
Enfim, a fachada da Atocha Renfe, o peso da mochila às costas, agora sim. Os semáforos em Madri custam a liberar os pedestres, mas ao sinal vermelho ninguém os ameaça. Um desejo pequeno, como: remédio para o estômago. Mas teria antes que ver o médico, e não há tempo, que os edifícios, os trens, os espanhóis precisam desabar na tempestade de areia que se aproxima.
No interior da estação a estufa, os avisos honestos para anunciar as próximas partidas, toda a sinceridade para informar ao público, tanta franqueza, sua pior fraqueza. E há essa massa vegetal soberba, jurássica, que Abdelahid jamais desejará ver. O Islã, com tão pouco verde na ponta dos dedos e o coração de areia, não poderia admirar-se dessa exuberância tão desprotegida. Respiro esses ares vivos, com seus nomes. Adiante, o cheiro dos trens pontuais de tanta gente sem memória, pobre gente, crianças aos pedaços por causa do fio da minha cimitarra. (A espada curva tem a vantagem do corte, tem a leveza, em contraste com as pesadas espadas dos cruzados.)
Não deveria ver Jamal, mas somente eu o vejo com sua própria arma às costas, adquirida, como a minha, no El Corte Inglês. Jamal espera na plataforma, como eu. Entre as próximas partidas, um trem para Toledo, este em que gostaria de embarcar antes do pó e das cinzas, ingredientes para compor uma cidade com os tons tão diversos daqueles imaginados por El Greco. Essas feridas prestes a rasgar-se em Madri, pudesse entregá-las aos pincéis do pintor, para o pigmento de suas retinas únicas. Não pude levar Abdelahid a Toledo, nem mesmo lembrando as vitórias do Islã sobre os visigodos e de 700 anos de prosperidade na península - omitindo Afonso VI, o último ponto em favor dos cristãos, com os califas ocupados em cortar nossa própria carne.
Agora. Madri. Chega esse trem rodeado de gente. Jamal desaparece entre os cristãos e tantas mochilas comuns. Os vagões todos, este quase lotado que escolho por isso. Meu destino de cumprir o meu, sem outro motivo que uma bala ou um golpe nesta antiqüíssima guerra que já vejo perdida de tanta covardia dos cruzados em Jerusalém, dos mouros de Saladino, tantas retomadas, retaliações.
Não falta nada quando o grande relógio da estação salta ponteiros sem prestar a atenção que deveria. Entro no trem para inspecionar os assentos todos ocupados, um instante para acomodar a cimitarra esquecida sob a conversa de futebol de dois meninos, assim, por discordar que o Barcelona possua uma equipe capaz de bater os "Galáticos" do Real, mesmo jogando em Camp Nou.
Poderia rever o planejamento de tantas minúcias e imaginar essa conversa estraçalhada, esses primeiros gritos que não se ouvirão, o telefone celular no interior da mochila esquecida, à espera da chamada de Abdelahid. Mas saio depressa, nem um pouco mais leve de mãos limpas porque sei que tantos outros aparelhos celulares como o meu e o de Jamal haverão de tocar pontualmente nos vagões dos trens em Atocha, El Pozo e Santa Eugenia, para que pereçam os inimigos do Islã, netos dos reis católicos, de Afonso VI e de Godofredo de Bulhões.
Volto pela Calle de Atocha e tenho que parar, como todos em Madri, para ouvir as primeiras explosões e levar as mãos à cabeça. Todos à rua, uns e outros nas janelas, ainda muitos por detrás das portas fechadas. Imagino a fumaça sufocando as plantas, o ar estragado para sempre em nome do profeta - o nosso - afinal seu golpe fundo no olho do crucificado, que, na certa, descerá da cruz para o revide. Há correria, gritos próximos e distantes nesse horizonte que não pára de explodir. As sirenes tão rápidas, onde se acode com precisão, tantas mortes que prefiro não imaginar.
Abdelahid e outros como ele, gente do Islã com mochilas pesadas - ou espanhóis que trocam haxixe pelo explosivo Goma 2 Eco, roubado às minas - agora celebrarão, não com um cálice de Rioja, cujo sabor jamais conhecerão, como eu não deveria.
As ruas estão tingidas de dor. Caminho a esmo até a Plaza de Oriente para retornar pela Gran Via. No bolso, apalpo meu gatilho não disparado e meus últimos euros, os que reservei para ver El Greco no Prado, uma última vez antes de deixar a Espanha.
(do livro Que fim levou Rick Jones?, Amparo, 2010)
imagem retirada da internet: cimitarrra
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Conto,
Literatura Brasileira
ganhou, entre outros, os prêmios de Revelação de Autor da APCA, o Casa de las Américas e o Guimarães Rosa. No ano de 1998, edita Terratreme, poesia, livro que recebeu o Prêmio Bolsa de Literatura, pela Fundação Cultural do DF. Durante nove anos dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil em Caracas. É Doutor em Literatura pela UnB. Em 2000, publica o livro de poemas Andarilho, da ed. 7Letras. Em 2004, sai Eterno Passageiro (Ed. Varanda). Em 2005, pela Ed. LGE, lança o romance O viúvo, que o crítico Adelto Gonçalves chamou “de uma das primeiras obras primas da literatura brasileira do séc. XXI”. Em 2007 lançou dois livros: Manual de Tortura (Esquina da Palavra, contos, 2007) e A Ideologia do personagem brasileiro (Editora da UnB, ensaio, 2007). Em 2009, sai A máquina das mãos, poemas, publicado pela 7Letras, que ganhou o Prêmio de Poesia 2010, da Academia Brasileira de Letras. Em dezembro de 2010 lança o romance Um homem é muito pouco. Memória dos Porcos é publicado em 2012. O difícil exercício das cinzas, de 2014, é seguido pelo livro de ensaios A cidade na literatura (2016) e, mais recente, Matadouro de Vozes (2018)
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