sábado, 4 de maio de 2013

Um homem é muito pouco - 6





Dois meses depois, Clemente voltava de uma viagem à Europa. Trouxera presentes para Yolanda e para Aninha. A menina ia crescendo rápido. Clemente pensava nela com tristeza. Pensava que o corpo vadio do pai conseguira lhe dar vida e alegria, enquanto ele, com o corpo forte de marujo, não conseguira dar vida a ninguém. Clemente desconfiava até mesmo se dava vida a si próprio.

Se Josué não conseguira passar a sífilis para Yolanda, ele conseguira passar o que agora chamava de o mal de Bremen para a mulher. Yolanda também se culpava por não ter dado vida à menina que gerara e prometera a Clemente que lhe daria outro filho, saudável e completo, porque estava cansada das coisas pela metade.

Toda sua vida foi pela metade. Não tivera a presença da mãe que lhe enfiara num colégio de freiras, o que era também metade. Não tivera muitos namorados. O pai, severo e conservador, todas as férias a mandava para a Europa a fim de se educar e de polir a cultura, mas Yolanda via aquilo como uma maneira de controlá-la e de mantê-la afastada do mundo da Tijuca, do Rio de Janeiro, dos colegas do colégio e dos amigos do clube. Aquilo também era outra metade. E então quando vinha a ter outro filho, depois de Aninha, o filho que lhe nascia era uma metade. E, pior de tudo, metade que não sobrevivera.

Yolanda não soubera exatamente como era a mãe dela. A mãe, essa metade do casamento dos pais, era mulher fechada, bela, dura, exigente e de nervos fracos. Ficava trancada vários dias, vivia adoentada dos pulmões e das pernas, sem exatamente se saber se tinha tuberculose ou se era avariada de doença congênita ou se as doenças não passavam de invencionice para não dormir com o marido e para que não pudesse ir com ele às recepções, teatros, cinemas, viagens, conferências, solenidades.

O pai tinha amante, mas Yolanda não se importou que o pai tivesse amante. Uma amiga de colégio queria se matar porque descobriu que o pai tinha amante. Mas Yolanda até mesmo gostou de saber que o pai era um sujeito normal e que a mãe é que o jogara nos braços da amante. Ela nunca se lembrava de carinho da mãe. A mãe não tinha mãos. A mãe a olhava como estranha. No café da manhã olhava para Yolanda e era como se olhasse para uma estranha, quase dizia o que esta menina está fazendo na mesa? A mãe não tinha mãos e também não tinha braços. Nunca recebeu um abraço da mãe. A mãe também não tinha lábios, nunca recebeu beijo da mãe.

Quem ia assistir às peças do colégio em que ela representava era a amante do pai, Juliana, moça pobre, mas culta, que dava aula no subúrbio e lia em francês. Foi Juliana quem lhe apresentou Rimbaud, mas um Rimbaud suave e juvenil, o Rimbaud de Le dormeur du val. Yolanda ficou encantada, pensava que Clemente era apenas cozinheiro da Marinha, grosseirão e pobre, mas como Juliana, a professora amante do pai que dava aula no subúrbio, ele também havia lido o Rimbaud de Le dormeur du val. Tanto fazia ser Juliana ou ser um boneco de madeira que estivesse na plateia, o importante é que alguém estava ali para ver a representação dela. E Juliana era mais que boneco de madeira, porque boneco de madeira não tem pernas grossas, não fala francês, não tem cabelos cheirosos e caindo em cachos pelos ombros, não abria as pernas jovens para que o pai dela a penetrasse.

A mãe vivia no quarto escuro e levava o quarto escuro para todos os lugares. Juliana não tinha problemas com as pernas que eram grossas, delgadas, afrancesadas. Juliana não tinha os nervos fracos, para pegar lotação e ir dar aula de francês no subúrbio, ela necessitava de ter nervos fortes, duros, rijos. Juliana também não carregava pulmões fracos, com pulmões fracos ela não podia fumar os cigarros Gauloises que o pai de Yolanda mandava vir da França.

Numa certa tarde, Yolanda e Clemente foram visitar Juliana na casa dela em Botafogo. Era uma rua transversal, arborizada, se podia ouvir canto de pássaro e a casa, de um único piso, parecia vir de outro século. Embora de linhas retas, tinha uma varanda com bordados de ferro e balaústres de madeira, o que desgostava a dona da casa. Acreditava que a madeira, como os humanos, carregavam humores e trabalhavam tanto na seca quanto na água exagerada dos meses de chuva.

Juliana havia tido filho de um francês.

O pai de Yolanda, ao morrer, deixou no testamento a casa de Botafogo. A mãe de Yolanda nunca comentou o fato e se alguma vez o fizesse diria que era normal um patrão generoso como o marido ter deixado para a secretária de quase toda a vida – o que não era verdade – um reconhecimento do seu trabalho, principalmente nas épocas difíceis e na adversidade da doença.

O filho francês de Juliana tinha a cara do pai dela.

O filho francês de Juliana tinha os olhos brasileiros do pai dela, tinha os cabelos brasileiros do pai dela, tinha o nariz brasileiro do pai dela.

O namorado francês que Juliana conviveu durante um ano em Paris, nunca ninguém o conheceu, nem mesmo por fotografia. Yolanda pedia para ver o pai do filho de Juliana e ela desconversava. Por fim Yolanda se convenceu de que o filho de Juliana era seu irmão e que não iria nunca mais tocar no assunto. Passou a ter carinho especial pelo meio-irmão, dava-lhe presente, queria que ele convivesse com a sobrinha, ou seja, com a filha de Yolanda, Aninha, e sempre visitava Juliana, que a recebia com chá, bolo e petit fours que aprendera a servir depois de sua estada na França. Juliana continuava a dar aulas de francês, fazia traduções para editoras de livros de medicina.

Tanto se especializara que conhecia doenças e tratamentos, remédios e diagnósticos em português e em francês. Aprendera muito da língua francesa e aprendera muito de medicina. Só não sabia o que fazer com seu aprendizado de medicina. Não queria fazer faculdade e ser médica e cada vez mais se tornava a tradutora preferida da editora e de outras também que a queriam em seu quadro. Yolanda presenteava o irmão que tinha quase a idade de sua filha e acompanhava Juliana para muitos lugares que o marido, devido ao acúmulo de trabalho e por seu temperamento, recusava-se a ir.

 

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