Dois meses depois, Clemente voltava de uma viagem à Europa. Trouxera presentes para Yolanda e para Aninha. A menina ia crescendo rápido. Clemente pensava nela com tristeza. Pensava que o corpo vadio do pai conseguira lhe dar vida e alegria, enquanto ele, com o corpo forte de marujo, não conseguira dar vida a ninguém. Clemente desconfiava até mesmo se dava vida a si próprio.
Se Josué não conseguira passar a sífilis para Yolanda, ele conseguira
passar o que agora chamava de o mal de Bremen para a mulher. Yolanda também se
culpava por não ter dado vida à menina que gerara e prometera a Clemente que
lhe daria outro filho, saudável e completo, porque estava cansada das coisas
pela metade.
Toda sua vida foi pela metade. Não tivera a presença da mãe que lhe
enfiara num colégio de freiras, o que era também metade. Não tivera muitos
namorados. O pai, severo e conservador, todas as férias a mandava para a Europa
a fim de se educar e de polir a cultura, mas Yolanda via aquilo como uma
maneira de controlá-la e de mantê-la afastada do mundo da Tijuca, do Rio de
Janeiro, dos colegas do colégio e dos amigos do clube. Aquilo também era outra
metade. E então quando vinha a ter outro filho, depois de Aninha, o filho que
lhe nascia era uma metade. E, pior de tudo, metade que não sobrevivera.
Yolanda não soubera exatamente como era a mãe dela. A mãe, essa metade do
casamento dos pais, era mulher fechada, bela, dura, exigente e de nervos
fracos. Ficava trancada vários dias, vivia adoentada dos pulmões e das pernas,
sem exatamente se saber se tinha tuberculose ou se era avariada de doença
congênita ou se as doenças não passavam de invencionice para não dormir com o
marido e para que não pudesse ir com ele às recepções, teatros, cinemas,
viagens, conferências, solenidades.
O pai tinha amante, mas Yolanda não se importou que o pai tivesse amante.
Uma amiga de colégio queria se matar porque descobriu que o pai tinha amante.
Mas Yolanda até mesmo gostou de saber que o pai era um sujeito normal e que a
mãe é que o jogara nos braços da amante. Ela nunca se lembrava de carinho da
mãe. A mãe não tinha mãos. A mãe a olhava como estranha. No café da manhã
olhava para Yolanda e era como se olhasse para uma estranha, quase dizia o que
esta menina está fazendo na mesa? A mãe não tinha mãos e também não tinha
braços. Nunca recebeu um abraço da mãe. A mãe também não tinha lábios, nunca
recebeu beijo da mãe.
Quem ia assistir às peças do colégio em que ela representava era a amante
do pai, Juliana, moça pobre, mas culta, que dava aula no subúrbio e lia em
francês. Foi Juliana quem lhe apresentou Rimbaud, mas um Rimbaud suave e
juvenil, o Rimbaud de Le dormeur du val. Yolanda ficou encantada,
pensava que Clemente era apenas cozinheiro da Marinha, grosseirão e pobre, mas
como Juliana, a professora amante do pai que dava aula no subúrbio, ele também
havia lido o Rimbaud de Le dormeur du val. Tanto fazia ser Juliana ou
ser um boneco de madeira que estivesse na plateia, o importante é que alguém
estava ali para ver a representação dela. E Juliana era mais que boneco de
madeira, porque boneco de madeira não tem pernas grossas, não fala francês, não
tem cabelos cheirosos e caindo em cachos pelos ombros, não abria as pernas
jovens para que o pai dela a penetrasse.
A mãe vivia no quarto escuro e levava o quarto escuro para todos os
lugares. Juliana não tinha problemas com as pernas que eram grossas, delgadas,
afrancesadas. Juliana não tinha os nervos fracos, para pegar lotação e ir dar
aula de francês no subúrbio, ela necessitava de ter nervos fortes, duros,
rijos. Juliana também não carregava pulmões fracos, com pulmões fracos ela não
podia fumar os cigarros Gauloises que o pai de Yolanda mandava vir da
França.
Numa certa tarde, Yolanda e Clemente foram visitar Juliana na casa dela
em Botafogo. Era uma rua transversal, arborizada, se podia ouvir canto de
pássaro e a casa, de um único piso, parecia vir de outro século. Embora de
linhas retas, tinha uma varanda com bordados de ferro e balaústres de madeira,
o que desgostava a dona da casa. Acreditava que a madeira, como os humanos,
carregavam humores e trabalhavam tanto na seca quanto na água exagerada dos
meses de chuva.
Juliana havia tido filho de um francês.
O pai de Yolanda, ao morrer, deixou no testamento a casa de Botafogo. A
mãe de Yolanda nunca comentou o fato e se alguma vez o fizesse diria que era
normal um patrão generoso como o marido ter deixado para a secretária de quase
toda a vida – o que não era verdade – um reconhecimento do seu trabalho,
principalmente nas épocas difíceis e na adversidade da doença.
O filho francês de Juliana tinha a cara do pai dela.
O filho francês de Juliana tinha os olhos brasileiros do pai dela, tinha
os cabelos brasileiros do pai dela, tinha o nariz brasileiro do pai dela.
O namorado francês que Juliana conviveu durante um ano em Paris, nunca
ninguém o conheceu, nem mesmo por fotografia. Yolanda pedia para ver o pai do
filho de Juliana e ela desconversava. Por fim Yolanda se convenceu de que o
filho de Juliana era seu irmão e que não iria nunca mais tocar no assunto.
Passou a ter carinho especial pelo meio-irmão, dava-lhe presente, queria que
ele convivesse com a sobrinha, ou seja, com a filha de Yolanda, Aninha, e
sempre visitava Juliana, que a recebia com chá, bolo e petit fours que
aprendera a servir depois de sua estada na França. Juliana continuava a dar
aulas de francês, fazia traduções para editoras de livros de medicina.
Tanto se especializara que conhecia doenças e tratamentos, remédios e
diagnósticos em português e em francês. Aprendera muito da língua francesa e
aprendera muito de medicina. Só não sabia o que fazer com seu aprendizado de
medicina. Não queria fazer faculdade e ser médica e cada vez mais se tornava a tradutora
preferida da editora e de outras também que a queriam em seu quadro. Yolanda
presenteava o irmão que tinha quase a idade de sua filha e acompanhava Juliana
para muitos lugares que o marido, devido ao acúmulo de trabalho e por seu
temperamento, recusava-se a ir.
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