Ouvia-os falar de body art, de Duchamp, das instalações de Hélio
Oiticica e de Lígia Pape e outros e Clemente nunca tinha ouvido falar naqueles
nomes, embora se considerasse sujeito informado e que conhecia o mundo e era
leitor de livro. Mas aquele universo de artes plásticas ele não dominava e as
palavras queimavam, esquentavam-no, logo se tornavam cinzas e o significado
delas eram apenas borralho. Clemente percebeu que era o mais velho do grupo,
que ficava calado, com o copo de vinho tinto na mão – o velho olfato de
Clemente percebia o buquê, mas era falácia associar olfato com paladar –, que
ouvia a gargalhada do grupo e via que Yolanda trocava olhares com Toninho
Marcos, ela abaixava os olhos com sorriso nos lábios e Clemente percebia que
aquela linguagem ele conhecia. Estava embarcado num navio estrangeiro, que
falavam língua estrangeira, tinham gestos estrangeiros, risos estrangeiros, olhares
estrangeiros. Clemente tinha medo de desembarcar em Bremen. Não queria ficar em
Bremen na casa de Juliana. Diabo de profissão que afasta a gente da família.
Quando se volta se é quase um estranho. E a mulher não pode ir pra cama com um
estranho, tomar café da manhã na cozinha com um estranho, usar o banheiro com
um estranho dentro dele. Yolanda tinha bebido demais.
Vamos embora, disse Clemente.
Não, quero ficar mais um pouco, a gente nunca sai e quando sai você quer
ir embora logo.
Yolanda tanto riu que deitou a cabeça no ombro de Toninho Marcos.
Clemente não teve ciúme. O que sentiu foi enorme solidão. Estava ali solitário.
Solidão tão ampla e desprotegida que o fazia desembarcar em cidade que não
conhecia, nem tinha porto para desembarcar.
O espírito de Clemente foi ficando
fraquinho. O espírito dele precisava de cama, adoentado, débil dos pulmões, as
pernas inchadas de tanto dar voltas e voltas com a cabeça dele. O quarto – a
gente não deve duvidar dos quartos – estava cheio de ruas, de beijos, de risos,
de olhares furtivos. Os olhos mostram a alma. Como a alma não tem braço e não
tem pernas, como a alma não tem músculos e não tem quadris, o modo de a alma
mostrar descontentamento é pelos olhos que têm seus músculos, pernas, braços,
intenções, medidas, carências e outras partes do corpo e do repertório das
emoções.
(do livro Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)
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