SEGUNDA PARTE
Sempre odiei os dentistas. Tenho horror a tudo que se corta no corpo.
Mesmo o ato diminuitório de cortar as unhas. Toda vez que corto as unhas é como
se cortasse uma parte de mim. Ninguém gosta de que cortem as partes da gente.
Um pedaço de dedo, um pedaço de perna, uma orelha ou coisa que o valha. Sinto o
cheiro de minhas unhas cortadas. O dentista arranca os dentes e arrancar os
dentes é uma forma de mutilação. O dentista mesmo é mutilado. Usa dentadura. É
um velho. Um velho já foi muito mutilado. Talvez viver seja ser mutilado ano a
ano. Tenho medo de ser mutilado.
Fui duas ou três vezes nele. Não vou mais. Ele treme. Deu-me injeção.
Perdi o queixo. Gosto de perder o queixo. Porque perder o queixo quando não se
perde o queixo é uma coisa boa. A anestesia é uma brincadeira dos sentidos. A
gente brinca de perder o corpo ou partes do corpo. Perdi o queixo durante duas
horas. Depois o queixo voltou. Queria era anestesiar meu corpo todo. E não
sentir medo. Se a gente não tem corpo, como alguém pode ofender o corpo da
gente? O sujeito vem cortar a vida do corpo da gente e não encontra corpo. Quando
ele vai embora, o corpo volta.
(do romance Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)
(do romance Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)
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