E bem, ali estavam os três, Clemente, Yolanda e Aninha para fazer visita
a Juliana. Clemente ficou impressionado com a casa. Não pelo luxo que não
havia, Juliana era intelectual e não cuidava muito da casa. Havia livros e
papéis por todos os cantos e os móveis pareciam estar fora de lugar por alguma
razão desconhecida. E além do mais, em todas as partes havia cavalos de pau.
O marido de Juliana não gostava de ser chamado de marceneiro, acreditava
que os móveis que fazia, muitos deles desenhados por ele mesmo, eram obra de
arte. Copiava modelos ingleses, franceses e italianos, mas também impunha aos
fregueses os traços do seu desenho, que poderia nunca chegar a ser grife, mas que
lhe dava a paz de realizar trabalho artístico e não meramente mecânico e
operário.
Mas a fascinação do marido de Juliana eram os cavalos. Então havia na
sala em que foram recebidos cavalos de todos os tamanhos, pequeninos, médios,
grandes. Clemente mesmo se sentou numa cadeira que tinha forma de cavalo. Do
mesmo modo, Yolanda e Aninha também sentaram em cadeiras-cavalo, enquanto
Juliana se estirava numa chaise-long,
depois de recolher pratos jogados sobre a mesma, papéis espalhados em cima do
sofá como se tivesse sido pega de surpresa e não ter convidados para o chá.
Yolanda já estava acostumada com Juliana e com a casa de Juliana. Aninha sempre
gostava de ir à casa de Juliana, que lhe parecia enorme casa de brinquedo que,
lamentavelmente, só tinha o brinquedo do cavalo.
Quem estava incomodado era Clemente, que não se sentia à vontade sobre
uma cadeira que era cavalo ou sobre um cavalo que era cadeira.
O marido de Juliana era um cavalo. Era um cavalo grande. Homem cinza.
Todo ele era cinza. E ainda por cima fazia questão de se vestir de cinza.
Horácio era o nome dele. Mas Horácio não é nome de cavalo. Horácio deveria ter
nascido com o nome de cavalo. Ele levou Clemente para outra sala com pé-direito
alto.
Lá havia outros cavalos. Era a “cocheira” de Horácio. Era ali que ele
esculpia e guardava os cavalos, principalmente os cavalos maiores. Horácio
devia se chamar Homero e tornar verdade a história do cavalo de Troia. Horácio
era o único homem que Clemente conheceu que podia ter construído, nos tempos modernos,
o cavalo de Troia. Horácio era um homem espichado, magro de tanto cavalgar seus
cavalos, alimentando-se pouco e raramente. A cabeça de Horácio cobria-se de
cabelos cinza, as crinas de Horácio comportavam o cinza. Horácio colocou
Clemente num cavalo grande e ele também sentou num cavalo grande.
A impressão que Clemente reteve foi não que os cavalos fossem grandes,
mas que os dois, Horácio e ele, haviam diminuído. Clemente se sentia um pouco
criança, mas não se importava de se sentir um pouco criança. Os cavalos
enormes, gigantes, de Troia, os cavalos grandes de Horácio eram estilizados,
logo não se sentia cavalgando na madeira da oficina de Horácio. Coerente com os
cavalos de pau, não havia capim no chão da oficina, ou melhor, o capim também
era de madeira.
Os cavalos ficavam distantes um do outro e Horácio falava alto e
espichado, falava magro e cinza. Clemente respondia no mesmo tom e altura.
Era uma conversa desencontrada e magra. Dois meninos se balançando em
dois balanços numa praça, de vez em quando as vozes e os ouvidos se cruzavam,
mas no resto ele falava uma coisa, mas Clemente não escutava, estava no alto,
logo Clemente falava outra que ele não escutava, estava lá embaixo e vice-versa
ou versa-vice, como o próprio Horácio gostava de dizer. O versa-vice para
Horácio era a conversa secundária. Ele perguntou a Clemente o que ele fazia,
Clemente lhe disse e ele confessou que gostaria de ter sido marinheiro, que
quando criança pensava em entrar para a Marinha, mas depois tomou gosto de
cavalos e no mar não havia cavalos e era besteira de chamar de cavalo-marinho o
cavalo-marinho que era marinho mas não era cavalo.
Eu joguei todos os meus livros fora, ele gritou.
E por quê?
Os livros, como aconteceu com Dom Quixote, estavam me enlouquecendo. Eu não
gosto de enlouquecer, ele completou.
Clemente não disse para ele que também não gostava de enlouquecer, aliás
Clemente não conhecia ninguém que gostasse de enterro e de enlouquecer.
Não, Horário não se parecia com Dom Quixote, embora tivesse o rosto também
espigado e cabelo com topete que alongava o rosto dele. Horácio era tão magro
que Clemente via não somente as veias dos braços como também os feixes mínimos
de tendões e músculos que seguram as carnes.
Sabe quanto custa um cavalo desses?, perguntou apontando para os cavalos
em que estavam sentados. Quase um carro popular.
Clemente não sabia a razão de Horácio falar aquilo de os cavalos custarem
os olhos da cara. Queria se valorizar, é claro. Mostrava seus laivos de artista
e de artista plástico com exposição montada e cavalos vendidos. Clemente, não
por maldade, e sim por ingenuidade, perguntou se Horário já vendera algum
daqueles cavalos.
Alguns, poucos, respondeu com sinceridade Horácio.
Clemente gostou da sinceridade de Horácio. Se fosse homem rico, somente
pela sinceridade de Horácio, compraria o cavalo que valia carro popular embora
ninguém ainda tivesse pagado o preço de carro popular para um cavalo daqueles.
Você gosta de amêndoas?, perguntou de súbito Horácio, sem que nada que
tivessem conversado antes levasse a tal pergunta.
Gosto, gosto de amêndoas. Clemente pensou que Horácio ia lhe oferecer
amêndoas. Mas não. Feita a pergunta, se calou.
E um tempo depois disse: As amêndoas são muito boas.
Clemente não havia escutado direito e pediu que ele repetisse. E Horácio
disse: As amêndoas são muito boas. Clemente balançou a cabeça afirmativamente.
E pensou que talvez não estivesse ali em Botafogo, na casa de Juliana,
conversando com o marido cinza dela, sentado num cavalo gigante, e sim que estava
no sanatório em Bremen. Horácio explicou que aquele era seu método mnemônico
para guardar os nomes das pessoas. De agora em diante, Clemente se chamaria
“Clemente, o que gosta de amêndoas”. Ele, Horácio, já provara o método
inclusive numa visita que o casal fizera a amigos dela em Santa Tereza. Horácio
se prometeu que sairia de lá sabendo o nome de todos os amigos dela. Eram quase
vinte pessoas. Horácio foi apresentado a todos e pediu que Juliana ao
apresentá-lo lhe dissesse o nome. Na hora de partir, Horácio se despediu um por
um pelo nome.
Boa noite, Otávio. Boa noite, dona Marina. Boa noite, seu Cláudio. Boa
noite, seu Antonio Carlos. Horácio, ao ser apresentado, juntava o nome do
sujeito ou da mulher com algo aleatório, como Otávio com piano, Mariana com
fruta-pão e por aí vai.
Ao sair da festa, Horácio estava se despedindo era do piano, da dona
fruta-pão, do seu manteiga, da sua graminha, do seu novato, do doutor capacho,
de dona língua grande. Horácio não gostava de associar traços físicos com o nome,
para ele era o mais fácil de confundir. Nariz grande servia pra um bando de
pessoas ali mesmo na festa.
O método que Horácio consagrara – embora não fosse inventado por ele – se
estendia aos amigos de Juliana. Se Clemente era o que gostava de amêndoas,
Alexandre era o sujeito que gostava de jogar pôquer. Horácio não gostava muito
de Alexandre, pensava que ele dava em cima da mulher dele, o que não era de
todo descabido.
Juliana era uma mulher muito bonita. O dinheiro do pai de Yolanda podia
comprar qualquer miss, por isso não ia gastar tempo e dinheiro com uma
secretária que recitava Le dormeur du val, de Rimbaud. Se fosse feia,
poderia discorrer sobre toda a literatura francesa, de Rabelais a Flaubert, que
não levaria nenhuma bicota na boca murcha.
O pai de Yolanda conhecia o mundo e o mundo era belo. O mundo não era
belo para os pobres, mas o que o dinheiro que o pai de Yolanda comprava era
belo. Era bela a literatura do pai de Yolanda, eram belas a mulher e a amante
do pai de Yolanda, eram belas a casa e as viagens do pai de Yolanda, era bela a
casa com piscina em Palmas de Mallorca, era imensa com quadras de tênis
e uma cascata natural a mansão do pai no Alto da Boa Vista. Yolanda não
conhecia tudo sobre o pai dela. Havia um lado que o dinheiro não comprava e que
ele escondia da família.
O pai de Yolanda tinha muito a ver com o capitão Vaz. Não, não, nunca se
encontraram e agora que o pai de Yolanda estava morto só se encontrariam na
vida eterna, caso os dois acreditassem na vida eterna e, principalmente, se
existisse a vida eterna. O pai de Yolanda foi procurado por um empresário
paulista do grupo Ultragás e
ele pensou que o empresário fosse convidá-lo para o pai de Yolanda fazer parte
da companhia que estava de pernas bambas. Mas o negócio que empresário paulista
propôs foi ser sócio do Brasil.
O senhor é um patriota, dr. Macedo.
É claro que sou.
Muito bem, venho lhe propor se associar ao Brasil.
Mas o Brasil não tem dono.
É aí que o senhor se engana, disse o empresário paulista. O país é de todos,
mas há uma canalha que pensa que o país é deles e que eles vão tomar o Brasil
só para eles.
Meu Deus, exclamou com verdadeira surpresa. O pai de Yolanda era o
sujeito mais esperto e safado que se conhecia, mas às vezes deixava passar
ingenuidade.
Depois dessa conversa no Golden Room do Copacabana Palace, o pai de
Yolanda passou a contribuir para armar a repressão contra os comunistas que
queriam o Brasil só pra eles. O que jamais o pai de Yolanda ia imaginar é que a
amante querida e que ele cuidava como quem cuida da educação de filha na Suíça
fosse casar com comunista que militara antes de conhecer a arte de esculpir
cavalos.
Mas voltando à questão mnemônica de Horácio, o homem cinza que vinha a
ser Horácio – o rosto apresentava-se macilento, viam-se os pomos da face e até
mesmo os olhos apresentavam tonalidade cinza como de certos felinos – contou
para Clemente que Juliana tinha um amigo chamado Alfredinho e que ele
identificava Alfredinho como corretor da Bolsa. Certa vez chegou mesmo a
misturar as coisas e perguntar a Alfredinho como iam as ações na Bolsa e que
conselhos Alfredinho dava para quem, como ele inexperiente, quisesse se meter a
aplicar na Bolsa e foi quando Alfredinho disse que não era corretor da Bolsa e
que trabalhava numa imobiliária como corretor, não da Bolsa, mas de imóveis.
(Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)
(Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)
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