Meus olhos agora são de papel. Gosto da ideia de
pensar em meus olhos como papel. Passei a vida inteira lendo, não tenho nada
contra o cristalino, a retina, veias e músculos se transformarem em papel. Há
realidade bastante no barco pregado na parede. É um Portugal de papel. O norte
de Portugal transmuda-se nas janelas absurdas de Magritte. Fixo meus olhos ali.
Meus olhos não navegam, mas enchem-se de maresia. Meu alheamento também tem
cheiro – de mim.
Ali está o porto, precário, diminuto, de pedra, antigo. É
um pequeno píer de uma vila. Lá no fundo estão os casarios gregos da vila
portuguesa. Não há gente. O barco mesmo posa sua fisionomia de madeira para a
foto.
O casario é branco e sobe encostas. Cada casa é um degrau
branco. E as janelinhas, mais parecem escotilhas em terra seca, nos miram
abertas ao sol quente e atlântico. Há uma secura ancestral na foto, embora em
primeiro plano esteja o mar. Há também enorme doçura, uma doçura tão compacta e
palatável que a sinto nos lábios, na língua mesma seca. E não o salgado da água
que vejo. Só a maresia cheira; o casario adoça minha boca aberta.
A mesa é meu cais. Em volta dela, discutem. Por que
discutem um processo se pescadores cuidam de separar os peixes, abrir-lhes o
bucho, destripá-los, escamá-los? onde o processo cabe neste mundo de guelras,
barbatanas e água salgada? O processo não é náutico, mas é salgado. Nele cabem
as escamas, nele estão as escamas que devem ser separadas do corpo do bicho de
papel. Como o barco da foto, que parece balançar ao sabor das minúsculas
ondulações da água, oscilo sob uma onda sonora.
A foto está um pouco amarelada. Eu mesmo também perco a
cor. Queria um espelho. Meu rosto decomposto e azul como o rosto do meu pai.
Logo, contudo uma paz vilareja volta a me invadir. Receio que a paz, como a luz
fugitiva, também escape de mim. Não terei mãos, nada que possa conter, segurar,
prender, colocar em caixa, a paz que se escama.
Uma inexistente onda, saída da foto, me balança. Agora
não tenho dúvida: estou no porto de pedra e não em volta da mesa. Chego a
sentir enjoo, a sensação ondulatória, o piso mole das águas ou o piso
desequilibrado das embarcações.
Aquele Portugal de papel me saca da mesa de modo
arrebatador. O único elemento agora da foto de casarios brancos e do cais
antigo sou eu. O que se fixa na minha mente não é a foto, mas a reunião que
passa a ser apenas uma fotografia. Estão todos imobilizados. O barulho que ouço
não são as vozes deles. É o barulho do mar. O rumor grande e atlântico do mar
aberto.
O viúvo, Brasília, Lge, 2004.
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