(do livro Memorialística. São Paulo, 2012. Magaly Gonçalves, Zélia Thomaz de Aquino)
Em O viúvo temos a memória familiar do ângulo de visão do homem que
protagonizou uma história, e que nos leva a participar de sua vida interior,
não deixando claro o limite entre o sonho e a realidade.
A obra de Ronaldo Costa Fernandes é
uma narrativa feita pelo viúvo de Lídia, que morrera após relativamente longa
doença, durante a qual o marido fugira a seu convite para fazer amor, com nojo.
Ele é professor na universidade e tem a companhia do jardineiro José e da
criada Benedita. Quando José morre, Benedita assume o cuidado das plantas.
Durante certo tempo o viúvo mantém um caso com a economista de um banco,
Fernanda, que tem dois filhos. É perseguido pelo marido dela com o carro e,
numa perigosa manobra, sofre acidente, ficando seis meses em coma, quando
Fernanda o abandona. Num certo momento passa a cuidar de Benedita, agora
doente, levando-a ao médico. Ao fim pára de trabalhar, em condições não muito
claras.
O grande problema do viúvo é “sentir
o corpo”, pois vive em completa dissociação, perdendo até a sensação dos pés
como algo seu. É como se o corpo fosse estranho e com ele não se pudesse ligar.
Esta sensação, de caráter físico, pode ser interpretada como a contrapartida de
seu característico desligamento das pessoas. Realmente, a ideia que se tem é a
de que ele não consegue estabelecer com o outro, seja ele quem for, uma relação
verdadeiramente significativa.
Esta incapacidade de relacionamento
humano efetivo (traduzida na sensação de não sentir o próprio corpo) é
acompanhada de uma certa incapacidade de ver na vida algum sentido.
É na relação com Lídia que o viúvo
conseguia tornar real o próprio corpo, de outra forma estranho:
Aquele
corpo para mim era um corpo inédito. Meu corpo também era inédito. Meu corpo
não era inédito com Lídia. O quarto não existe. A gente inventa o quarto. O
quarto não é feito de móveis ou de espelhos, cama, console com som. O quarto se
resume a dois corpos. Certa vez agarrei Lídia na escada. Ali inventei o quarto.[1]
O viúvo sente a realidade do próprio
corpo e até “inventa” fatos da realidade na relação com Lídia. Esta relação
parece, assim, como um possível clarão a iluminar uma vida de outra forma sem
sentido. Na fuga ao marido de Fernanda, o viúvo sente mais claramente a falta
de sentido que permeia sua experiência:
(...)
Saí correndo, desembalado, o carro rangendo pneu na curva, derrapando. A culpa
não foi de Manfredo. Eu sabia muito bem o que estava fazendo. Senti o desejo de
me matar, de abandonar não a perseguição de Manfredo, mas uma perseguição
maior, a própria vida. (...)[2]
Fica claro que se trata de alguém
cuja luta vital é a busca de um sentido que lhe escapa constantemente, um
sentido que talvez pudesse atingir com Fernanda, mas esta é uma relação condenada
ao fracasso.
No hospital, diante de Fernanda, mas
sentindo-se mais perto de Lídia, o viúvo admite que perdeu o rumo, o que
aparece, metaforicamente, no acidente com o carro.
Enquanto o viúvo procura
ansiosamente um sentido vital que se lhe escapa, sua obsessão volta-se para a
ideia de limpeza, fato que é recorrente na narrativa. Não se trata,
propriamente, de desejar a limpeza obsessivamente, mas antes de senti-la com
intensidade desproporcional. É como se os objetivos se limpassem a si mesmos de
maneira ostensiva.
Duas ou
três semanas depois, a casa entra em rotina. E se limpa, se asseia, se higieniza e até
quer mostrar vaidade. Não há espelho que baste para a casa que rebrilha de
tanto lustra-móvel, limpador de vidro, detergente e sapólios.[3]
Se as coisas são personificadas, as
pessoas, às vezes, aparecem quase que reificadas, como acontece numa menção à
D. Benedita:
D.
Benedita não faz supermercado. Cada semana escreve garranchos que viram azeite,
arroz e macarrão. As palavras na cabeça de D. Benedita também devem aparecer
como garranchos. Difícil decifrar o que a mulher pensa, caso pense, porque a
cabeça de D. Benedita deve ser como papel em branco.”[4]
A personificação
da casa é seguida, em outro contexto, da animalização do narrador:
Já
pensei em mudar-me, mas nunca sairei desta casa. Ela é o bicho hospedeiro, sou
o verme que dele se alimenta. Às vezes penso que fui feito para morar aqui. Não
questão de destino, quando procurei desabava de velha e inabitável, fiz a casa
tanto a meu gosto que desconfio que ela me atraiu para lhe dar a forma que me
pediu.[5]
Ao contrário de outras obras,
principalmente a partir do século XX, cuja tônica é a expressão da falta de
sentido com que a realidade se apresenta, mas numa imagem que nenhuma tem a
acrescentar, aqui temos uma aguda, profundamente sentida, visão de tudo isso,
mas numa criação expressiva que não se esgota na simples negação. É do “sem
sentido” aparente do real que brota a mensagem mais forte da obra. Isto,
desnecessário dizer, pela maneira como ela se organiza e se realiza numa
linguagem “buscada” de profunda expressividade. É o contrário de outras obras
que se passam por complexas, mas que, na verdade, pouco conseguem construir.
Em primeiro lugar esta é uma obra de
2005, que reflete os males e as dores que marcam a literatura desde o século XX
mais claramente (já que desde sempre existiram). A angústia traduz-se neste
livro pela sensação de claustrofobia que parece atormentar o herói e que se
transfere para o mundo que o cerca, como diz Salomão Sousa:
Por
tratar-se de personagem que padece das doenças da pós-modernidade, o viúvo não
se limita a ser doente – ele adoece o mundo ao seu redor. A realidade perde as
suas funções inanimadas, assumindo os desastres que ele mesmo vem construindo.[6]
Essa sensação é o que problematiza
todas as relações humanas na obra. A visão aqui descrita pode ser claramente
constatada ao longo do texto, como no que se segue:
Estou na
garagem, transformada em
consultório. O consultório de vozes encarceradas. Ali sim
estão as vozes em seu estado primitivo, porque saem, mas não saem, ficam ali,
depositadas, aéreas, esparsas, presas para sempre no ouvido da doutora. A
garagem é um ventre de vozes, estão amortecidas, esperam que nós a busquemos,
há um repertório também de outras vozes, viciadas, lidas, eruditas, que a
doutora recolhe do ar, borboletas rebeldes, que se cruzam formando outro bando
de borboletas.[7]
Se quisermos escolher uma passagem
em que mais claramente aparecem as características aqui arroladas, podemos
escolher o capítulo 6 na sua íntegra, onde há uma descrição da casa que exprime
poderosamente a sensação de claustrofobia (nos quartos), sensação que não é
transmitida pela cozinha, para onde convergem “luminosidade, amplitude e vida”[8] o
que, normalmente se esperaria da sala. É na cozinha que ainda existe vida:
(...) A
vida vicejava na cozinha como planta adubada. As paredes porosas exalavam não
apenas o cheiro forte dos temperos, exalava ela mesma cheio de existência,
coisa viva, poderia suar ou gelar-se.[9]
Enquanto isso “a sala acabrunhava-se
numa soturnidade úmida” [10]
A sensação de ser o herói alguém
desconectado, fica afirmada com a menção ao telefone, como única forma de
ligação com o mundo.
A idéia de vazio a cercar o herói, é
enfatizada quando são mencionados meios sonoros e visuais:
Evitava
o silêncio, pelo menos logo depois da morte de Lídia, mas a televisão e o
telefone passavam a ser silêncios estentóricos.[11]
O viúvo vive numa casa onde parece
não existir nenhuma imagem, mas apenas penumbra. Num certo momento o herói
tenta fugir até da presença semanal da criada, que faz o sol entrar na casa:
O sol,
contudo, teimava em se instalar uma vez por semana. Diabo de rotina. Era quando
vinha D. Benedita.
/.../
Não
sabia em que cômodo ficar, escolhia o dia da semana em que teria de ausentar-me
o dia inteiro, mas às vezes coincidíamos e eu me via acuado, incômodo em minha
própria casa, quase pedia desculpas a D. Benedita por morar ali, ora que é
isso, nhô sim, nhô não, outro tanto envergonhado de ela expor sem limite ou
pudor a minha vida mais noturna e escondida.[12]
Tudo isso se exprime numa linguagem
própria que individualiza o romance, ao mesmo tempo em que o coloca numa
tradição das grandes narrativas. Adelto Gonçalves exprime bem isto:
O viúvo, de
Ronaldo Costa Fernandes, é um romance surpreendente. As frases curtas, diretas,
rápidas e cortantes reconstituem um clima pesado e sombrio (...), em que o
estado mental de quem escreve transborda para a palavra.
/.../
(...) É como se Machado de Assis tivesse renascido na
segunda metade do século XX e, incorporando todas as conquista literárias das
últimas décadas, renovando o idioma e produzido este texto que é o depoimento
apurado de um homem atormentado.[13]
Isto tudo é o que autoriza Adelto a
classificar a obra como “uma das poucas obras-primas do romance brasileiro
deste início de século XXI,”[14]
uma obra que “revisita” os grandes fantasmas da modernidade e pós-modernidade,
como acontece com Angústia de
Graciliano Ramos, mencionada por Lídia Cadermotori na apresentação para O viúvo, e como se vê em O estrangeiro de Albert Camus.
Salomão Sousa enfatiza ainda a
qualidade da linguagem que marca a obra, junto à maestria com que coloca a
relação entre personagem e realidade.
Esta é uma obra que está a merecer
mais fama e estudos críticos do que já recebeu, como se vê em Adelto Gonçalves.
Que um
país periférico não seja capaz de reconhecer os seus melhores autores, isso é
sintoma de que a nação já entrou em acelerado processo de desintegração. E por
isso seu futuro se desenha duvidoso. Infelizmente.[15]
[1] Ronaldo
Costa Fernandes – O viúvo, LGE
Editora, Brasília, 2005, p.36.
[2] Ronaldo
Costa Fernandes – O.C., p. 95.
[3] Ronaldo
Costa Fernandes – O.C., p. 115
[5] Ronaldo
Costa Fernandes – O.C., p.150.
[6] Salomão
Sousa – Agulha – Revista de Cultura # 49, Fortaleza, São Paulo, janeiro de
2006, acessado em 20/28/2007.
[7] Ronaldo
Costa Fernandes – O.C., p.24.
[8] Ronaldo
Costa Fernandes – O.C., p.27.
[9] Ronaldo
Costa Fernandes – O.C., p.27.
[10] Ronaldo
Costa Fernandes – O.C., p.27.
[11] Ronaldo
Costa Fernandes – O.C., p.28.
[12] Ronaldo
Costa Fernandes – O.C., p.29.
[13] Adelto
Gonçalves, O viúvo, um acontecimento
literário, Jornal de Poesia, acessado em 20/08/2007, p.1.
[14] Adelto
Gonçalves – O.C. p.1.
[15] Adelto
Gonçalves – O.C. p.3.
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