Dada a qualidade de sua poesia, Ronaldo Costa Fernandes não precisa matar Carlos Drummond de Andrade
O livro “O Difícil Exercício das Cinzas” mostra um poeta em plena forma,
inteiramente seguro de sua identidade e com a “angústia da influência” sob controle
Euler de França Beléminteiramente seguro de sua identidade e com a “angústia da influência” sob controle
A poesia e a filosofia são irmãs. Tanto que alguns filósofos, como o alemão Friedrich Nietzsche e o brasileiro Rubens Rodrigues Torres, são poetas. Os poetas autenticamente poetas escrevem sua filosofia em versos. Eles questionam o mundo, o homem e as coisas por meio da manipulação e, até, da perversão das palavras. Para tornar o mundo mais legível, ou às vezes mais complexo — porque a poesia é quase sempre enganadoramente simples —, os bardos, de Shakespeare a Carlos Drummond de Andrade, criam uma espécie de desleitura. Ao retirar ou desorganizar a ordem das coisas, invertendo sua lógica — como os filósofos que nos fazem pensar além do lugar comum, daquilo que repetimos como se fosse a nossa própria voz —, o poeta se torna o ser que desconcerta e, até, desconserta o mundo, a arrumação da linguagem e, daí, os leitores.
Um livro de rara excelência poética, “O Difícil Exercício das Cinzas” (7 Letras, 91 páginas), de Ronaldo Costa Fernandes, acaba de chegar às livrarias patropis e espero que seja lido com atenção tanto pelos leitores comuns quanto pelos críticos profissionais (não é o meu caso). Sua poesia desarma o leitor, porque, embora supostamente simples, é complexa e exige esforço, para além das referências, para captar suas filigranas e, sobretudo, para apreender uma poética que diz mais, muito mais, do que está aparentemente sugerindo. Fica-se com a impressão, e talvez não seja apenas impressão, de que se está dizendo muitas coisas sob a aparência de que os pequenos textos não estão indicando muito mais coisas.Ao unir o simples e o complexo, possibilitando várias leituras, Ronaldo Costa Fernandes por certo, mais do que agradar, enriquecerá os leitores que vasculharem, leve ou atentamente, sua poesia. Legível, preciso mesmo quando enviesado, o poeta pode ser lido por todos — desde que se tenha interesse para se envolver com suas, digamos, diabruras ou entorses verbais.
“De como eu quase matei Carlos Drummond de Andrade”, embora não seja um dos poemas mais refinados do livro, é divertido e hábil. Num elevador, o poeta “anônimo” e o poeta “maior” se encontram: “Fiquei pensando/que poderia matar o poeta CDA./Ficaria famoso como ficou famoso/Lee Oswald por matar Kennedy./Falariam de mim toda vez que/falassem de Drummond”. Porém o poeta não é como Mark David Chapman, que matou o músico John Lennon, e Lee Oswald. Para aproximar-se verdadeiramente de um poeta que avalia como maior, às vezes matando-o simbolicamente, o poeta tem de se tornar um grande poeta. Ou pelo menos deve buscar isto. É provável que D. H. Lawrence (que leria com satisfação “Nadar quando se voa”, sobre uma vespa) tenha tentado “matar” Walt Whitman (citado, com Fernando Pessoa, em “Aos dezoito anos”: “mimeografei meus dedos/e encarcerei-me na liberdade”), e decerto não o conseguiu, mas, ao tentar superar o mestre, ou ao menos ombrear-se, tornou-se um poeta magistral. O livro comentado, assim como os anteriores, indica que Ronaldo Costa Fernandes busca um lugar na poesia brasileira, entre Deus, Carlos Drummond de Andrade, e Zeus, João Cabral de Melo Neto. (Ronaldo Costa Fernandes também é contista e romancista.)
Há dois poemas sobre o pai, que pode ser o do poeta, mas que é, no fundo, sobre a figura paterna em geral. Umberto Saba sugere, num poema, que tentou libertar-se do pai, mas que acabou se tornando um par, quase, quem sabe, um simulacro (“Meu pai foi para mim ‘o assassino’,/até os vinte anos, quando o conheci,/e vi que não passava de um menino/e o dom que tenho dele recebi.” Tradução de João Moura Jr.) Ronaldo Costa Fernandes anota no esplêndido “Meu pai habita meu corpo”: “Meu pai vive em mim./Não sei onde se localiza,/no meu corpo, meu pai morto./Há anos que trago meu pai/como um apêndice”. No mesmo poema, escreve: “Depois cresci e meu pai/virou um latido rouco numa garagem vazia”. E acrescenta: “Meu pai vive em minhas mãos, por isso colho ausência”. É um belo “diálogo” entre o vivo e o morto — sendo que o morto sobrevive no vivo. O presente, afinal, nada mais é que uma colcha de retalhes do passado.
O outro poema, “A plantação de equívocos do meu pai”, é interessável desde o título. “Nas raízes da mais tenra idade,/vi, no quintal, meu pai/cultivar uma plantação de erros./Era uma beleza de galhos retorcidos,/mais densos e rasteiros/como são os pensamentos/em forma de tubérculos”. Adiante: “Aqui, um pé atrás de desconfiança./Ali, as folhas mortas do desinteresse/e os cipós do ciúme”. A poesia, dados os românticos, deixa a impressão de que é a voz da paixão — os poetas modernos abominam a palavra inspiração; quase todos, até Paulo Leminski, querem “transpirar” (“esquecendo” que trabalhar cansa, como sabia o italiano Cesare Pavese) — e, para falar do pai, o deus de uma casa e de uma família, só com certo distanciamento. A poesia, que planta desvios e ambiguidades, como Henry James na prosa, é o instrumento adequado para aproximar e distanciar, quiçá, mais do que para perdoar, para compreender, tolerar e, até, amar.
A arte nunca é meramente biográfica. O poeta fala dos outros quando trata de si e fala de si quanto se refere aos outros. O pai da poesia de Ronaldo Costa Fernandes é, de algum modo, os nossos pais. O quintal, lugar praticamente íntimo, é, também, o mundo, uma de suas porções. O pai é aquilo que se precisa odiar, por mais sagrado que seja, para aprender a amar. O pai, para ser inteiramente amado, precisa morrer, simbolicamente ou não.
No poema “O lugar onde não estou”, um dos mais bem realizados — e talvez por isso usado para fechar a série de poemas mais “conectados” do que “largados” ou “isolados” —, o poeta diz: “Muitas vezes meu corpo/não me é contemporâneo”. E mais: “Prefiro as belezas subterrâneas/que estão na arqueologia da pele”. É quase uma definição da poesia de Ronaldo Costa Fernandes. Ele movimenta as palavras — nas suas mãos, sempre dançantes e musicais — para escavar fundo em busca das belezas subterrâneas. O poeta explica-se no poema “Os aniversários queimados na vela do tempo”: “Não escrevo para preencher o vazio,/mas para esvaziar-me”. “A arca das consequências” frisa: “e nenhuma salvação nos versículos que escrevo”. O poeta talvez não queira ser visto como guia. E, de fato, sua poesia não é professoral. Não tem aquela fluência forçada, escondida pela elaboração possibilitada pelo conhecimento, da poesia de alguns acadêmicos.
O filósofo anglo-letão Isaiah Berlin escreveu que as pessoas vivem no presente e que a esquerda, seguindo a tradição cristã — daí o filósofo britânico John Gray considerar o marxismo como uma religião político-filosófica —, decidiu que elas deviam pensar no futuro, no paraíso. O Céu é, no pensamento da esquerda, o comunismo — o reencontro com a vida comunitária, uma espécie de recuo, de volta ao passado mais remoto. Porém, a se aceitar a tese de Isaiah Berlin, o indivíduo que sacrifica o presente pelo paradisíaco futuro morre, por assim dizer, vivo. Mas ninguém expressa de maneira mais adequada e eloquente o que se disse acima do que os poetas. Em “O contágio da vida”, Ronaldo Costa Fernandes filosofa por meio da poesia: “Ninguém está livre da vida. A vida é altamente contagiosa./(…) Não há remédio contra a vida./(…) Nada se pode fazer contra a vida./Senão adoecer-se dela, viciar-se nela, acostumar-se com seus sintomas./(…) o paciente deve entregar-se/à moléstia da vida/e contaminar-se/com a infecção do gozo/que penetra primordialmente a alma/lá onde cirurgião nenhum pode extirpá-la.” Em “A vida tem pés pesados”, o poeta assinala: “A vida — tem que saber tocá-la”.
Em “Correnteza dos meus pecados”, há aquelas frases intrigantes, típicas de Ronaldo Costa Fernandes, que fazem as palavras darem um novo sentido às coisas: “A correnteza tem músculos de água”. Ou: “O liquidificador das perdas/dá de matar aos redemoinhos.” O poema “Primeiro dia do ano” começa assim: “O calor tampa a garrafa do corpo”. E conclui, se é que um poema precisa de conclusão (às vezes o “fim” é o início ou o meio): “Ainda nos lembraremos/que nada se renova./Só os prudentes/insistem em passear a esperança,/lobo preso à coleira,/até que ela morda o próprio dono”.
O jornalista às vezes acredita que, ao escrever uma reportagem apressada, sobre um crime ou qualquer outro assunto, está traduzindo a realidade tal como é. Porém, se entender que sua profissão não raro é indefensável, com suas invasões de privacidade e traições conscientes ou inconscientes das fontes, perceberá que aquilo que publica no jornal é tão-somente um recorte da realidade. A realidade fragmentária que sai nos jornais quase sempre guarda um toque de ficção. Já o poeta desconfia mais daquilo que vê e, por isso, retorce as palavras, cortejando-as com faca amolada. Em “A fuga do risco”, Ronaldo Costa Fernandes, como se estivesse reverberando o eterno retorno de Giambattista Vico, nos agarra com punhos de aço: “Por um caminho eu vinha/carregando nos olhos a dúvida/que faz aparecer e desaparecer/a realidade.//Por um obséquio do círculo,/que não deixa nada escapar,/a dúvida em seu trapézio/colocava óculos de grau/em fatos que não eram míopes/nem ao menos de perto se turvam”.
Num poema curto, “O cativeiro da paixão” (transcrito integralmente), Ronaldo Costa Fernandes trata de um tema caro a todos nós: a paixão e o amor (contradição em termos?). “A paixão quando irrompe/salta madura como se o novilho/parisse o adulto de sua espécie.//Deseja a condenação do desejo,/a prisão perpétua do amor,/pois, sabe-se, a liberdade/é às vezes a real condenação/e a prisão liberta o que é cativo”. A liberdade talvez seja a palavra, e seu sentido, mais amada pelos homens. Mas eventualmente o amor pode nos tirá-la. A vida em sociedade também cria amarras. Porém, seja o que for, é o que mais queremos, ainda que seja uma ficção a liberdade… absoluta.
Aos que não quiserem perceber que toda poesia é política, mesmo quando insiste que não é, há poemas de Ronaldo Costa Fernandes que são mais explicitamente sociais ou políticos, “atentos” às coisas do cotidiano, como “Planalto em chamas”, que lamenta as queimadas e a destruição do cerrado. “O cerrado vai comendo a si próprio,/na dieta incendiária./A névoa seca engana os olhos/com seu véu de noiva incandescente.” Há dois poemas significativos sobre Brasília (talvez mais do que sobre a capital em si) — “O caranguejo” (“porque cada um traz seu rio da infância/dentro de si, mesmo que nunca tenha/se banhado em rio, mesmo que sua infância/seja negada e seca”) e “Pai nosso que estais no céu de Brasília”. O que não há é politiquice na poesia de Ronaldo Costa Fernandes. Engajamento há, por certo, mas não partidário, ideologizado. Aqui e ali, roça o panfletário, mas escapa rápido — dada a finura de sua poesia.
“Zoologia da vida e da morte” mexe com a lógica da linguagem, mostrando, mais uma vez, que a poesia aproxima-se do repensar da filosofia: “A vida e a morte/não deveriam ser femininas./Não há nada mais neutro/e pessoal a uma só vez./A vida é híbrida/como mula/e a morte é de dois gêneros, comum e anfíbia,/um jacaré que habita/a água da escaramuça/e sobrevive na terra da surpresa”.
“Ato do fim” exibe o poeta dando um nó na realidade: “Gosto dos parques sem diversão. (…)/Domingo é uma palavra preguiçosa”.
Este texto não é uma crítica, e sim um breve comentário. A poesia de Ronaldo Costa Fernandes merece e exige uma análise mais competente e técnica — uma crítica poética — de profissionais, como Alfredo Bosi, Regis Bonficino, Afonso Romano de Sant’Anna, Gilberto Mendonça Teles, Alcir Pécora, Nelson Ascher e Paulo Henriques Britto. A crítica especializada pode conectar, com precisão, as coisas do indivíduo às coisas do mundo, pode perceber como, quando parece apenas poetar (com certo ludismo) e, às vezes, falar de si, o poeta está, na verdade, versando sobre seu tempo, a respeito do modo de vida de sua época. O poeta está no mundo, decifrando-o a partir de sua visada individual. Um crítico mais atento pode, quem sabe, perceber, de maneira mais ampla, que o poeta, sua fala no poema, pode ser um personagem, e não o próprio poeta. O poeta às vezes não é um fingidor, mas o homem, e o poeta é um homem, é quase sempre um fingidor — daí, tal como um prosador, um criador de personagens, sendo, não raro, ele próprio uma criatura, transformada, extraída de sua pena.
[O livro está à venda no site da Livraria Travessa]
Nenhum comentário:
Postar um comentário