terça-feira, 16 de julho de 2024

Outra crítica sobre Vieira na ilha do Maranhão (Vera Lúcia de Oliveira)


                                              













 Um Imperador no Maranhão

Vera Lúcia de Oliveira

O imperador da língua portuguesa, como foi chamado o padre Antônio Vieira por Fernando Pessoa, viveu oito anos no Maranhão. De 1653 a 1661, realizou o seu trabalho missionário entre colonos, gentios, índios antropófagos, bichos e insetos demoníacos, doenças raras e bizarras, peste e todo tipo de perigo. Um horror. Mas cumpriu a missão que lhe foi designada pela Ordem dos Jesuítas, a que pertencia de corpo e alma. (Dizem as más línguas que Vieira não era português nem brasileiro: era jesuíta). Se lhe fosse perguntado, diria, com certeza, que preferiria atuar nas cortes europeias, onde desempenhou as mais altas funções, de embaixador a conselheiro de reis e rainhas, pois era homem político. Mas, além disso, ortodoxo que era, dedicou-se ao cargo de Visitador da Companhia de Jesus e à expansão da fé católica. Visitou indígenas, pregando a Palavra de Deus. E vociferou contra todos os desmandos da gente portuguesa. Não poupou ninguém. Nem aos sacerdotes seus pares.

Mais do que esse período no Maranhão, Vieira (1608-1697) é parte importante da nossa história porque viveu no Brasil dos seis até perto dos trinta anos de idade, na Bahia, onde foi criado, em Pernambuco, onde foi professor, para retornar outras vezes deixando sua marca profunda na história política, social, religiosa e cultural do país. A sua obra magistral é sem precedentes e sem continuadores. Talento ímpar. Escreveu as mais belas e inspiradas páginas de sermões, cartas e obra profética.

E não foi por outra razão que agora dá título e vem como personagem em Vieira na ilha do Maranhão, (Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019), romance histórico do poeta e ficcionista Ronaldo Costa Fernandes, que, com poesia e muita imaginação, nos transporta para o século 17, para vivermos a aventura dos colonizadores na chamada ilha do Maranhão. É uma aventura e tanto. E também uma experiência antropológica. Na natureza selvagem, em meio a todo tipo de conflitos, busca insana de riquezas e posse da terra, escravização dos índios, as ordens religiosas exerceram papel dos mais relevantes. O principal deles – aí entra o trabalho do padre Vieira – foi a defesa dos índios, vítimas primeiras do processo de escravidão na colonização europeia, como nos conta Ronaldo em seu estilo admiravelmente culto, elegante e elevado. Como ensina Vieira.

Ronaldo debruçou-se sobre a história do Estado que o viu nascer e, com riqueza narrativa, expressou o ambiente cultural que o impregnou ainda na infância, ficando totalmente à vontade no trato do tema. O conhecimento do clima tropical, com o calor úmido, pegajoso e infernal, a indolência da gente, a beleza da paisagem oceânica, a cor local enfim é de um connaisseur que se sente em casa para contar a sua história.  A trama se passa, portanto, no Maranhão e é um verdadeiro cabo de guerra. De um lado, os colonizadores europeus ávidos por riqueza, valendo-se de crueldade sem precedentes na escravização dos índios, coitados, para o trabalho em suas fazendas; e, na outra ponta da corda, a arraia-miúda e os religiosos com seus próprios interesses, mas a favor do tratamento humanizado desses habitantes naturais da terra, sempre incompreendidos e aviltados, essa gente “que não tem Fé, nem Lei, nem Rei”, como a chamou Gândavo, cerca de um século antes, em 1573.

As personagens constituem o ponto alto da narrativa: religiosos dedicados, cultos; irmãs de caridade no trabalho de acolhimento em seus conventos; colonos sem escrúpulos, donos de terra e gente; trapaceiros de toda espécie; foragidos da lei; saqueadores; mulheres com fogo nas entranhas; índios barbados; doentes, loucos: todos - todos - seres humanos dignos de figurar no bestiário de Borges. Com quanta crueldade se faz uma nação colonizada? É o que Ronaldo parece perguntar. Uma gente movida por impulsos, pulsões sexuais, mais que isso, instintos primitivos de vida, algo semelhante a uma longa noite pré-histórica do nosso passado de gente explorada.

Mas essa profusão de viventes exige muita atenção do leitor, pois, por capricho talvez do narrador, essas personagens são chamadas ora pelo nome completo, ora pelo primeiro nome, ora pelo sobrenome, ora pelo seu ofício, dificultando de imediato a sua identificação.  Sem falar nos nomes duplicados e na mudança repentina de cena.

O narrador é um colono português, sabedor de todos os acontecimentos, que nos enreda na teia da história de uma gente que vive por milagre, uma vez que tudo conspira contra ela. Ele se diz amigo do “Paiaçú” (pai grande) padre Vieira, que, embora não seja o centro da narrativa, perpassa-a com sua forte e poderosa presença, dando luz e força ao texto. Faz toda a diferença. Surge aqui e ali, na casa de um e de outro, sempre nos momentos em que a sua presença e autoridade são requeridas, a exemplo do infame episódio da barca dos insensatos, na qual foram atirados os excluídos e indesejados pelos mandantes da ilha, para que fossem eliminados, e que é dos momentos mais pungentes do livro. E, como está sempre em movimento, Vieira parte nas entradas por terras rudes e igarapés tortuosos e traiçoeiros, em meio à selva, para levar a Palavra de Deus aos índios dos mais remotos ermos. E, principalmente, para afugentar o perigo calvinista, hereges, em sua opinião, que disputavam a alma dos índios.

Pois esse imperador do nosso “rude e doloroso idioma”, na melancólica expressão de Bilac, com sua roupeta surrada e sandálias gastas, que dormia num catre duro de madeira, que acreditava nas profecias que diziam do advento do V Império de Portugal, que fez sermões duríssimos de emudecer até os santos nos nichos da igreja, que disse: “Não há verdade no Maranhão”, ele, sim, engrandece o livro do Ronaldo e nos enche de orgulho, não patriótico, mas humanitário.


(Correio Braziliense, 7.09.2019)








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