O governador
aceitou a realidade. Pediu que Vieira comandasse um grupo de sábios para
estudar como atacar a peste. No Colégio dos Jesuítas, sentaram-se em volta da
mesa o padre Ambrósio, o físico Rui, o mouro Omar Zahen, o inaciano Pierre
Millet, ou Pedro Milé, o sargento-mor António dos Prazeres e Gualberto Espanhol,
agora chamado de Gualberto o Enforcado. Este último era entendido em astros
celestes e nas ciências de Klépero. Não tinha conhecimento das ciências do
corpo humano. Vieira tinha-o como sábio. E era o que bastava. Um homem
inteligente como ele poderia a qualquer momento, diante de uma polêmica, apontar
um caminho ou colocar-se a favor da razão e da lógica.
Rui apresentou o problema. Mostrou
um mapa improvisado. Ali estavam as ocorrências maiores da doença. O relato de
que a peste invadira os sertões e dizimava os gentios não intrigou os participantes
da assembleia.
O
médico também mostrou livros, entre eles, o do médico Morão, de Galelo e de
Hipócrates. Classificou em duas espécies a enfermidade devastadora e má: a
peste negra, fatal e ruim; alastrim, bexiga branca, indolente e fraca. Era a
primeira que descera suas asas sarcófagas sobre a ilha. Carcavaz ponderou que a peste significava o
desdouro do povo. Os colonos estavam sendo punidos por sua arrogância, vícios
graves e profanos, culpas horrendas e atos de desonra e heresia. Vieira passou
a mão na testa, arfou como se estivesse enfarado. A peroração religiosa de
Carcavaz cabia nos sermões, mas não resolvia o problema de saúde pública.
O mouro foi chamado para opinar. Al
Campelo lembrou que Al-Razi, o médico muçulmano, utilizava cânfora nas
epidemias. Além disso, empregava tintura de mirra, o óxido de mercúrio e a água
de alcatrão.
– Al-Razi recomendava a utilização
de benzoares.
– E vós podeis explicar, mestre
Omar, o que vêm a ser os benzoares?
–São pedrinhas encontradas nos
intestinos de todo e qualquer animal que rumine.
Na Europa, disse padre Millet, há
quem acredite que a bexiga provenha do calor excessivo do corpo e que,
portanto, há que esfriá-lo, colocando o enfermo à exposição de correntes de ar,
tisanas frias, eméticos e sangrias. Outros creem que o doente tem de enfrentar
o calor para expulsar a doença. Então se usam bebidas sudoríferas, vinho
quentíssimo, cidra com pau de sassafrás e pimenta ardente, licores exsudantes.
Rui permanecia calado. Vieira
desgostava daquele grêmio que ele mesmo escolhera. Virou-se para o padre
Ambrósio. Com aceno de cabeça, solicitou a opinião do jesuíta. Ambrósio servira
no Bispado do Japão. Lá, cuidavam os empesteados com o tratamento rubro.
– Cobriam os quartos do doente com
sedas vermelhas, o chão com tapetes de um vinho tinto tão forte que escurecia o
ambiente. Balões vermelhos, colchas vermelhas, louças vermelhas, lanternas
vermelhas, velas vermelhas.
– É isto que vós sugeris para o
tratamento dos enfermos?
– Padre Vieira, sou apenas um servo
de Deus, e se a medicina pratico é por lume e direção da mão do Senhor. Se vós
todos acreditais na utilização do método asiático para as mazelas da bexiga,
como tratamento coadjuvante, então é porque se fará o desígnio divino.
– Um tratamento caro – opinou Rui. –
Não temos seda, balões, velas, lanternas, colchas e alfaias vermelhos.
Carcavaz voltou à carga:
– Aqui em nossa biblioteca encontrei
um livro de ensino da medicina de nossa congregação. Os antigos jesuítas
utilizavam fezes de cavalo, não secas, mas recentes, composto de papoulas
vermelhas, bagas de sabugo e beoártico do Curvo.
– E vós podeis explicar ao grupo,
padre Carcavaz, o que vem a ser o tal do beoártico do Curvo?
– Chifre de unicórnio, olhos de
caranguejo, raízes e folhas de ouro fino.
– Muito bem – interrompeu Rui. – Vós
sabeis onde poderemos encontrar no Maranhão chifres de unicórnio?
Calado até aquele momento, Gualberto,
outrora de apelido Espanhol, levantou-se. Todos viraram o rosto em sua direção.
Tinha a trunfa alourada, crespa e metade comida pelos cabelos brancos, as
roupas rotas e turvas, as sandálias emporcalhadas de lama, as unhas negras dos
pés e mãos engrandecidas e tortas, a barba de anacoreta dava-lhe por fim o
aspecto de um insano. Não se dirigia à mesa daquele pequeno parlamento. Olhava
difuso e ausente para um horizonte que ia além da parede.
– Tenho estudado a influência da lua
sobre os homens. A peste que nos assola tem a ver com os líquidos do corpo. A
lua chupa as marés para o alto. Meus estudos me levam a acreditar que os homens
ficam mais leves durante as luas cheias.
Sentou-se e nada mais falou.
(do romance Vieira na ilha do Maranhão. Rio: 7Letras, 2019)
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