Caminho na multidão. Mas, falando sozinho assim, passo a ser um sujeito esquisito, do qual as pessoas se afastam, não pelo medo físico de ser agredidas, mas porque os esquisitos podem dizer obscenidades, despropósitos, inconveniências ou a verdade, o que vem tudo a dar no mesmo. Se as pessoas são como eu, elas terão sua pequena dose de loucura escondida, fechada, como se leva dinheiro avulso e não se quer perder e então aperta o velcro ou fecha com zíper o bolso do calção. A pequena loucura, mesmo que seja pequena, não se expõe socialmente, vive aprisionada, principalmente em forma de desejo ou pensamento proibido que surge repentino sem que se puxe por ele. Um desejo molesta a gente, chega em hora imprópria. Pode nos surpreender numa fila de banco ou dos Correios, numa loja de perfume, numa praça de alimentação ou ao ser apresentado à filha de um amigo, o desejo, ora o desejo.
Não quero também ser descarnado, que me retirem tudo o que tenho de libido e passe a ser um sujeito anódino, máquina que anda por aí, alguém a quem cortaram os colhões.
Entro numa farmácia, mostro a lista de remédio.
– De que o senhor está rindo?
– De nada.
– Então por que me olha assim?
– Assim como, senhor?
Há outro rapaz atrás do balcão. Ao me ver alterado – por que estou alterado? – ele vem e se coloca fora do balcão. Entendo a atitude dele. Atrás do balcão, caso eu tenha alguma reação violenta, terá entre nós o próprio balcão que dificulta ataque, mas também atrapalha a defesa. De repente percebo que toda a farmácia está com a atenção em mim. É mais um louco, devem pensar. Manias. Mas o homem gordo, rosto redondo, que me olha sério e irônico – é certo que me olha irônico – não deveria rir de minha cara, da minha receita, do meu modo de vestir, o que está olhando? Não posso me engalfinhar com o rapaz que se aproxima como quem vai expulsar um mendigo da farmácia. Insensatez. Recuo.
– Onde está minha receita?
– Ele foi buscar o remédio.
– Não quero mais o remédio.
– Ó Jorge, o cliente não quer mais o remédio – grita o gordo para dentro da farmácia.
Não sou mais um homem jovem. Se me atraco com o rapaz, por certo ele me trucida, quebra meus ossos. Além do mais, os empregados todos da farmácia se colocam de prontidão. Percebo que sou uma ameaça. Eu, quem diria, a ameaça. Não gosto de me sentir uma ameaça. Se alguém ameaço esse alguém sou eu mesmo. Aqui está, senhor, a sua receita. Coloco a receita no bolso. Me dirijo para o shopping do outro lado da rua. Percorro as vitrines. Nada me interessa. As luzes dos jogos eletrônicos me atraem. Outra vez me pego pensando nas máquinas. São todos jovens os que estão ali.
Duas moças despertam em mim o que pensava adormecido. Não gosto de misturar outra vez máquina com desejo.
São todos fascinados pela tecnologia. A tecnologia não passa de meio mecânico de existência, por que as pessoas se fascinam tanto com a tecnologia? A máquina me leva a ser máquina, estende meu nariz, alonga meus braços, binocula meus olhos, coloca meu ouvido do outro lado do mundo, meu ser – meu ser físico – é um gigante de dimensões inimagináveis, loucura de um cérebro que não ousa pensar-se tão grande. Por trás dela está apenas o vácuo, logo o brinquedo da tecnologia é o desvio de mente enferma que se deixa dominar. Eu não quero que máquina nenhuma venha a me dizer como se comportar ou existir. O sujeito que acredita usar a máquina está enganado porque ela traz em si a contradição de sua existência. Miséria. Enquanto penso que uso a máquina, ela me transforma nela mesma e nessa metamorfose quem perde a humanidade sou eu, porque a máquina não perde sua essência de máquina, sua maquinidade.
– Quanto custa?
– O quê, meu senhor?
– Quanto custa jogar naquela máquina?
– É uma máquina nova.
– Desculpe, perguntei quanto custa, não se a máquina é nova.
Ele me vendeu uma ficha. Coloquei-a na máquina. O bicho disparou. Perdi todos os jogos. Aborreci-me. Fui tomado por um ódio visceral, eu que costumo ser pacífico. Chutei a máquina. Puxei os fios. O segurança se aproximou.
– Emergência, setor 3 – disse no rádio. E repetiu: Emergência, setor 3.
E, virando para mim:
– O senhor pode me acompanhar?
– Já estou indo embora.
– O senhor danificou a máquina, meu senhor.
– Que máquina?
Não sei que aparência tinha. Que aparência eu tinha, diga, que aparência? Dois homens fortes, vestidos de roupa preta, me levaram para uma sala.
– O coroa é maluco – disse um deles.
– Com maluco a gente tem uma maquininha que os malucos gostam de brincar.
E tirou da gaveta a porra de uma máquina de dar choque.
– Tudo quanto é louco gosta de choque.
– O senhor gosta de estragar máquina, né? Esta aqui estraga maluco.
E me deu choques que me fizeram rolar pelo chão de dor. Desgraça. Depois a sala ficou vazia. Me recuperei. Mas já não era o mesmo. Andava entorpecido, a vista turva, o coração disparado. Andei ainda pelo shopping como autômato, mais tarde peguei um táxi.
Não sou mais eu, sou vários e não sou ninguém, um ninguém cibernético, um ninguém eletrônico e entediado. Tenho também várias cabeças, a que pensa que pensa, a que mandam pensar o que a máquina pensa, o que pensa os outros, o que pensa o que pensa, o que pensa que pensa independente do que pensam as pessoas que pensam pelos que não pensam.
Nenhuma máquina poderá viver por mim. Nenhuma, veja, nenhuma. Só me fascina o velho e destoante: o corpo. O corpo humano, mesmo aquele plastificado e vítreo, que já me horrorizava no colégio: um homem com as vísceras à vista: o corpo de plástico transparente onde se viam lá dentro o fígado azul, o pâncreas verde, o intestino marrom, o coração cor de rubi, as veias azuladas e os músculos beges.
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