segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Saudação a Edmílson Caminha, Fabio Coutinho


      O escritor que hoje recebemos no glorioso e octogenário PEN Clube do Brasil figura entre os melhores cronistas da língua portuguesa, sejam quais forem a época, o lado do Atlântico e o continente de que se a observa. Infelizmente, contudo, uma calada conspiração da indiferença umbiguista impede que se saiba disso, não apenas em Portugal e na África, mas também nas regiões Sudeste e Sul de nosso país. Até hoje, a extensa obra de Edmílson Caminha, cultivada com esmero, paciência, criatividade e originalidade por este artífice do vernáculo, era de conhecimento exclusivo do Ceará, do Distrito Federal e de alguns privilegiados leitores de fora, como o poeta e biógrafo baiano João Carlos Teixeira Gomes, para quem Caminha é autor de “um dos mais lúcidos e profundos estudos existentes na nossa crítica sobre a relevância do memorialismo como criação literária, (...) em que ele efetua, pela primeira vez, a classificação e a tipologia do gênero.”

      Já destacou, também, Teixeira Gomes, que “do mais alto relevo são (...) as revelações contidas em estudo básico sobre Rachel de Queiroz, editado pela Academia Brasileira de Letras, relembrando as passagens essenciais da vida da magnífica romancista.”

      A eleição de Edmílson Caminha para o PEN Clube do Brasil, o reduto nacional da promoção da literatura e da defesa da liberdade de expressão, surgiu, assim, com o propósito de sanar essa gritante falha de autoconhecimento da cultura brasileira.

      No parágrafo vestibular do capítulo intitulado Massangana, de seu clássico Minha Formação, o inigualável Joaquim Nabuco assinalou: “O traço todo da vida é para muitos um desenho de criança esquecido pelo homem, mas ao qual ele terá sempre que se cingir sem o saber...”

      Viajante contumaz, hoje conhecedor dos quatro cantos do planeta Terra, Caminha soube invariavelmente carregar, na mala que leva sobre a cabeça, a origem cearense de que sobremodo se orgulha, a do menino que nasceu, cresceu e se fez homem em Fortaleza, mas dela partiu para o mundo, fixando tudo em crônicas saborosas, captando o novo e a novidade como a criança intelectualmente curiosa que sempre foi e registrando-os em livros cultos, prazerosos, instigantes.

      A impressão que sobeja da fatura literária de Edmílson Caminha é a de que o livro é quase a concretização de um múnus público, ou seja, algo que dá aos outros qualquer coisa em termos de informação, de distração, de direito à felicidade. Um texto que faz o leitor ficar pensando nos viajantes, na geografia, na história, deixando fluir a imaginação, até mesmo embarcando com o autor. Nas palavras inspiradas do fenomenal escritor espanhol Javier Marías, “às vezes tenho a sensação de escrever prosa com a paciência e o senso de rítmo com que o poeta escreve seus versos.”

      E não basta escrever bem, tão bem que o leitor,  a certa altura, pare de ler porque não segue uma aventura de viajante atento, observador, perspicaz, mas um mero, burocrático e enfadonho roteiro literário. Escrever é uma serventia oferecida à sociedade, a exemplo da medicina, da arquitetura, da carpintaria. É, como evidenciam os livros de Caminha, uma prestação de serviço público, pois ele escreve para os outros, para quem, por enquanto, não pôs a mala na cabeça, mas, se  e quando o fizer, será um viajante mais completo, mais educado e sábio.

      Em suma, o novo Membro Titular do PEN não escreve, jamais escreveu, para si, nem para seu grupo de amigos, muito menos para os críticos. Fá-lo erga omnes.

      Querido confrade Edmílson Caminha: sem conseguir escapar da força avassaladora do duplo sentido de um trocadilho, vislumbro que Vossa Senhoria ainda está fadado a alçar novos e mais altos vôos. Aqui, nesta bela sede do PEN Clube do Brasil na Cidade Maravilhosa, de há muito era urgentemente esperado. A casa é sua: pode entrar, instalar-se na cadeira que conquistou com tantos méritos e competência tanta e conviver fraternalmente, enquanto merecermos o extraordinário dom da vida.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

O nobre sequestrador, Antônio Torres


Duguay-Trouin com o Rei Louis XIV

O sequestro do Rio


Ronaldo Costa Fernandes


A tomada do Rio de Janeiro pelo corsário francês René Duguay-Trouin, que, durante dois meses manteve a cidade sob seu jugo em 1711 e exigiu uma fortuna para devolvê-la, é o tema do romance do escritor Antônio Torres intitulado O nobre sequestrador.
Antônio Torres é um velho lobo do mar, para usar linguagem marítima. Autor maduro, de larga trajetória, Torres envereda pelo romance histórico de maneira original, usando vozes diversas, recursos narrativos densos e variedade de tempo e espaço.
A diferença entre pirata e corsário deve ser estabelecida. O pirata é um bandido por contra própria, um empreendedor privado; o corsário é um bandido subsidiado pelo rei, um empreendedor estatal. Se os capitais para a empresa são diversos, o objetivo final é idêntico: o roubo, a pilhagem, a destruição de cidades. René Duguay-Trouin manteve a cidade do Rio de Janeiro sitiada e só a libertou em troca de vinte milhões de cruzados, mais ouro, prata, 27 canhões, 1167 barbatanas de baleia, 750 volumes de lonas, cem caixas de açúcar, duzentas cabeças de gado e inúmeras outras mercadorias e objetos. O corsário, em nome de um direito internacional de cabeça para baixo, de uma Europa em permanente litígio e a América e os mares vistos como terra de ninguém, vagava pelos oceanos com o aval do Rei Luís XIV.
O nobre sequestrador, em sua primeira parte, excetuando um exórdio carnavalesco, onde mistura presente e linguagem coloquial brasileira com o século XVIII e a história ainda a ser contada do personagem que ele elegeu, é uma narrativa realista, colada ao texto das memórias verdadeiras de René Duguay-Trouin. Está cheia de dados, números, referências a documentos, presa a datas e fatos precisos. Nesta primeira parte, quem narra a história é o próprio Duguay-Trouin. Conta-nos não apenas a tomada do Rio de Janeiro como sua juventude e ingresso na vida de homem do mar, aventureiro, filho da cidade conhecida pelos seus corsários: Saint-Malo. Ainda nesta primeira parte, o francês, ou melhor, a estátua do francês visitada pelo narrador do romance, trezentos e tantos anos depois, de uma perspectiva histórica cronológica impossível, mas verossímil como ficção, conta-nos os feitos de sua vida aventureira.
Na segunda parte, surge uma mistura do velho narrador René Duguay-Trouin e um narrador onisciente que atualiza a história. Este narrador relata o aparecimento da curiosidade do pesquisador brasileiro em relação ao corsário, conta suas viagens à França em busca de informação complementar, sua demissão do trabalho de publicitário ( e divagações ligeiras sobre a velhice ). Retorna ao relato, agora através de um diário impessoal, narrado em terceira pessoa, com a descrição simples das ações para a tomada da cidade do Rio de Janeiro.
Uma terceira e última parte vem se acrescentar: o narrador passa a ser a própria cidade. Ofendida, machucada, ressentida, violentada.
Este vaivém narrativo enriquece o romance, atualiza-o, dá-lhe um viés da pós-modernidade: metaficção historiográfica. Outra face contemporânea dá-se na ucronia ( “tempo histórico maluco, em que Júlio César duela com Napoleão e Euclides consegue demonstrar o teorema de Fermat” – Umberto Eco ). Revela-se principalmente no fato de a estátua dialogar com o narrador-investigador da vida corsária de René Duguay-Trouin, a mistura de tempos diversos e da visão de apreender a História como mais um texto. Mas há, contudo, um dado inquietante: os narradores insistem em perpetuar a memória do corsário. Não desfazem ou humanizam a figura do personagem histórico. Esta é uma questão que vale a pena ser levantada do ponto de vista mesmo do autor: por que a preocupação de manter a imagem de herói para o corsário? Ora, René Duguay-Trouin é um bandido real, um saqueador, pode ser herói para a França, mas não há heroísmo nenhum no fato de nós, brasileiros-cariocas, termos sido saqueados por um francês.
Antônio Torres, porém, é um mestre da narrativa. Com pulso forte, pena da galhofa e ironia sem melancolia, Torres nos sequestra para sua aventura narrativa e nos fascina com dois mundos: Saint-Malo e Rio de Janeiro. E lança-nos em dois tempos: passado e presente convivendo no tempo histórico da trama.

imagem retirada da internet:Duguay-Trouin com o Rei Louis XIV

sábado, 10 de outubro de 2015


A Academia Brasileira de Letras (ABL) e a Imprensa Oficial de São Paulo lançaram no dia 29 do mês passado, a partir das 18h30, na sede da ABL, 38 títulos da Série Essencial.


Composto por livros que oferecem informações básicas sobre os ocupantes das cadeiras da ABL ao longo de sua história, bem como sobre os patronos da instituição, cada volume apresenta ainda sucinta antologia dos imortais.

Acadêmicos e especialistas responsáveis pelos textos pretendem atingir um público amplo e diversificado. A intenção é que a obra desperte no leitor o interesse de se aprofundar no conhecimento da obra de todos aqueles que tiveram seus nomes vinculados à ABL.

Em formato de bolso, a obra será comercializada em kits, a R$ 100, ou separadamente, a R$ 10 a unidade. O kit contempla 15 livros.



Imortais e seus autores:

Afonso Arinos – Autor: Afonso Arinos, filho; Afrânio Coutinho – Autor: Eduardo Coutinho; Alberto de Oliveira- Autor: Sânzio de Azevedo; Alberto de Faria – Autora: Ida Vicenzia; Alcântara Machado – Autor: Marco Santarrita; Alfredo Pujol – Autor: Fabio de Sousa Coutinho; Álvares de Azevedo – Autora: Marlene de Castro Correia; Álvaro Moreyra – Autor: Mario Moreyra; Augusto de Lima – Autor: Paulo Franchetti; Austregésilo de Athayde – Autora: Laura Sandroni; Antonio José da Silva, o Judeu – Autor: Paulo Roberto Pereira; Bernardo Élis – Autor: Gilberto Mendonça Teles; Castro Alves – Autor: Alexei Bueno; Celso Cunha – Autora: Cilene da Cunha Pereira; Cyro dos Anjos – Autor: Sábato Magaldi; Coelho Neto – Autor: Ubiratan Paulo Machado; Domício da Gama – Autor: Ronaldo Costa Fernandes; Euclides da Cunha – Autor: José Maurício Gomes de Almeida; Gonçalves Dias – Autor: Ferreira Gullar; Graça Aranha – Autor: Miguel Sanches Neto; Gregório de Mattos – Autor: Adriano Espínola; Humberto de Campos – Autor: Benício Medeiros; José do Patrocínio – Autora: Cecilia Costa Junqueira; Josué Montello – Autor: Claudio Murilo Leal; João Cabral de Melo Neto – Autor: Ivan Junque; Júlio Ribeiro – Autor: Gilberto Araújo; Lafayette Rodrigues Pereira – Autor: Fabio de Sousa Coutinho; Luiz Edmundo – Autora: Maria Inez Turazzi; Mario de Alencar – Autora: Flávia Amparo; Magalhães de Azeredo ; Autor: Haron Jacob Gamal; Machado de Assis – Autor: Alfredo Bosi; Rachel de Queiroz – Autor: José Murilo de Carvalho; Raimundo Correia – Autor: Augusto Sérgio Bastos; Ribeiro Couto – Autora: Elvia Bezerra; Sergio Correa da Costa – Autora: Edla van Steen; Teixeira de Melo – Autor: Ubiratan Machado; Vianna Moog – Autor: Luís Augusto Fischer; e Visconde de Taunay – Autora: Mary del Priore



quarta-feira, 7 de outubro de 2015

A voz de um poeta afegão

Poeta afegão dá forma ao metal e a palavras duras
 


Azam Ahmed
Em Khost, no Afeganistão
  • Christoph Bangert/The New York Times
    Matiullah Turab, um dos mais famosos poetas pashtuns do Afeganistão, na garagem onde ganha a vida consertando os coloridos caminhões de caravana paquistanesesMatiullah Turab, um dos mais famosos poetas pashtuns do Afeganistão, na garagem onde ganha a vida consertando os coloridos caminhões de caravana paquistaneses
O poeta passou uma tira de metal pelos cortadores de aço antigos, gerando triângulos brilhantes que caíam com um ruído monótono no chão da oficina.
Ao fundo, o ruído dos trabalhadores enchia o pátio: uma plaina trabalhando sobre uma longa viga, um gerador zumbindo; o gemido de um caminhão gigante a diesel em marcha lenta.
A música da dura jornada de trabalho brotava em torno de Matiullah Turab, um dos mais famosos poetas pashtuns do Afeganistão, na garagem onde ganha a vida consertando os coloridos caminhões de caravana paquistaneses, que transportam mantimentos para o campo.
A cadência de suas noites, no entanto, é própria: formatando uma poesia tão dura e penetrante quanto as ferramentas que usa durante o dia. A natureza e o romance não lhe despertam o menor interesse.
"O trabalho de um poeta não é escrever sobre o amor", rosnou, com sua voz potente misturando-se ao ruído da oficina. "O trabalho de um poeta não é escrever sobre flores. Um poeta deve escrever sobre o sofrimento e a dor das pessoas".
Com suas palavras resolutas, Turab, 44, oferece uma voz para os afegãos que se tornaram cínicos em relação à guerra e seus perpetradores: os norte-americanos, o Talibã, o governo afegão, o Paquistão.
A guerra se transformou em um comércio
Cabeças foram vendidas
Como se tivessem o peso do algodão,
Na balança estão os juízes
que experimentam o sangue, e então decidem o preço


Versões gravadas dos poemas de Turab se espalham de forma viral, especialmente entre os pashtuns, os quais ele defende descaradamente -- em uma afinidade tribal que aliena alguns tadjiques e hazaras. Sua estreita ligação com Hezb-i-Islami --meio partido político islâmico, meio grupo militante-- afasta outros.

Apesar de suas afiliações estreitas e sectaristas, sua poesia tem apelo popular. Turab reserva sua caridade para os afegãos comuns, abatidos pela corrupção e o desapontamento que vieram a definir a última década de suas vidas.
Muitos veem seus poemas como uma forma de combater a versão dos fatos diariamente propagada pelo governo, diplomatas, líderes religiosos e a mídia. Alguns dos poemas foram traduzidos do pashtum para o inglês pelo "The New York Times".

Vocês, porta-bandeiras do mundo,
Que nos fizeram sofrer em nome da segurança
Gritam por paz e segurança,
e despacham armas e munições


Sentado em um banco improvisado, com o chapéu de lã pakol ligeiramente inclinado e roupas manchadas de graxa, Turab olhou para a noite para além de sua oficina de concreto, uma paisagem de panos, arames e lixo. O calor miserável era quebrado de forma intermitente por um ventilador de pé ligado a uma bateria de carro. Um vendedor vizinho martelava uma pedra de gelo, cortando pedaços para vender aos motoristas que passavam por ali.
"Não há nenhum político genuíno no Afeganistão", disse ele, abrindo um breve e raro sorriso. "Até onde eu sei, os políticos precisam do apoio do povo, e nenhum desses políticos têm isso. Para mim, eles são como acionistas de uma empresa: só pensam em si mesmos e em seus lucros".
Ele continuou: "O Talibã tampouco é a solução. Já se foram os tempos quando a maneira de o Talibã governar funcionava".
Ele não tem paciência para preciosismos em seu próprio trabalho ou no de outros. Ele é particularmente impiedoso com membros do governo. Ele os ridiculariza, dizendo que deveriam costurar três bolsos em seus casacos: um para coletar a moeda afegã, outro para coletar dólares norte-americanos e um terceiro para as rúpias paquistanesas.
Apesar de todo seu desprezo, no entanto, Turab continua popular em círculos influentes do governo, e o presidente Hamid Karzai convidou-o recentemente para o palácio presidencial em Cabul.
"O presidente gostou da minha poesia e disse que eu tinha uma excelente voz, mas eu não sei por que", disse ele. "Eu o critiquei".

Na verdade, ele é bastante requisitado. Embora ele prefira estar em casa em Khost, a agenda de viagens de Turab supera muito a dos outros ferreiros. As pessoas se reúnem para ouvir suas raras leituras pessoais e, quando novos poemas são postados no YouTube, rapidamente ficam entre os mais assistidos pelos afegãos.
Ele está planejando uma viagem a Moscou em breve para receber um prêmio de membros da diáspora afegã. E ocasionalmente ele se apresenta para o governador de Paktia, um amigo.
Turab é o mais recente de uma longa lista de poetas afegãos adorados, sendo o mais famoso o místico sufi Rumi, cujas obras de amor e fé permanecem populares em todo o mundo. Neste país, aforismos poéticos surgem nas conversas cotidianas, adotados por afegãos de todas as esferas da vida. Em partes de Cabul, não é raro ver homens amontoados transferindo arquivos de áudio de leituras poéticas de um telefone celular para o outro.
Embora a poesia seja amada, raramente é paga. Alguns escritores assumem empregos públicos, concluindo que o salário fixo e as responsabilidades modestas podem ser favoráveis ao seu trabalho. Turab, por sua vez, ficou em sua garagem suja na periferia da cidade de Khost.
"Esta é a minha vida, o que você vê aqui: bater no ferro, cortá-lo, alongá-lo", disse ele. "Eu ainda não me digo poeta".
Há outra coisa, porém, que até o franco Turab parece relutante em confessar: ele é quase analfabeto. Embora consiga, com dificuldade, ler uma cópia impressa, ele nem escreve nem lê a caligrafia dos outros, disse ele. Ele constrói sua poesia de cabeça, e confia na memória para retê-la e nos outros para gravá-la.
Turab cresceu em uma pequena aldeia da província de Nangarhar. Era pobre até mesmo para os padrões afegãos. Seu pai era agricultor e plantava apenas o suficiente para alimentar a família. Embora tivessem pouco, ele lembra com carinho de sua infância --particularmente dos dias que passava estudando com o poeta da aldeia, um homem que amava por suas palavras afiadas e sua honestidade.
Depois da invasão soviética em 1979, Turab, que era adolescente na época, mudou-se com a família para o Paquistão. Lá chegou a fase adulta, retornando ao Afeganistão apenas duas décadas mais tarde, com um comércio, uma esposa e um público modesto como poeta.
Ele continuou refinando sua arte depois de seu retorno, cultivando um público cada vez mais amplo. Sob o governo Talibã, ele se atreveu a publicar um livro com sua obra --um erro grave.
"O Talibã me bateu muito", disse ele, balançando a cabeça e em seguida abrindo um sorriso. "Depois disso, eu decidi que publicar não era uma boa ideia".
Embora ele seja declaradamente leal aos pashtuns, ele não tem amor pelos talibãs, estreitamente identificados com as tribos pashtuns. Ele diz que odeia o terror que cultivam e a forma como desestabilizaram o Afeganistão. E os criticam por serem tão ineptos e alienados quanto o governo apoiado pelo Ocidente.

Ó cemitério de caveiras e opressão
Rasgue a terra e reapareça
Eles me provocam com o seu sangue,
E vocês jazem intoxicados com pensamentos de virgens.

A estrada de terra diante de sua loja percorre todo o caminho até o Paquistão, e é uma salvação econômica. Há comerciantes ao longo de toda a estrada, vendendo de tudo, desde neve para evitar o calor escaldante até frutas da estação. Periodicamente passa um comboio de veículos americanos, quebrando o feitiço de uma cena totalmente afegã.
"Às vezes fico surpreso que as coisas não estejam caindo aos pedaços", disse ele, unindo as mãos enquanto reflete sobre os anos de guerra e de presença estrangeira. "Mas então percebo que há uma lei social aqui que mantém o país unido, mesmo que não haja nenhuma lei governamental".
Embora ele tenha sido crítico da ocupação norte-americana, ele nota o progresso que veio com ela: estradas, energia elétrica e escolas. São outras partes do legado ocidental no Afeganistão que o deixam preocupado.
"A democracia vai prejudicar e eliminar nossas leis tribais", disse ele. "O remédio prescrito pela democracia não foi adequado para a doença desta sociedade".
Tradutor: Deborah Weinberg
(fonte:uol)

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Exilados, conto de Jádson Barros Neves

*Menção honrosa no concurso Guimarães Rosa da RFI em 1994


O navio era branco e deslizava na linha do horizonte, em mar ensolarado, sereníssimo, e desvaneceu-se com a lufada de ar que atingiu o rosto de Mábio. Então, Mábio descobriu-se na mesma cama onde dormira na noite anterior, com a mesma dor de cabeça e a mesma náusea de suas manhãs. Depois, embora plenamente acordado, não se sentia com ânimo para deixar o leito junto à janela aberta: o pequeno retângulo onde naufragava um pedaço de céu cinza e baixo, a plenitude da oitava manhã de chuva, a de domingo.
Do dia anterior, recordava muito pouco. A manhã, com uma espécie de sereno esfarinhado castigando o mundo, galopara velozmente. Depois do meio-dia, ainda sem comer nada, ele havia entrado no salão de sinuca e tomado a primeira dose de uísque. Lembrava-se de ter bebido mais cinco doses, antes de pegar o taco e aproximar-se dos homens que jogavam vida e dizer-lhes: “Também embarco nesta”. Vencera algumas partidas; depois começara a perder seguidamente, suando muito, ofuscado pela luz crua da lâmpada que iluminava o relvado da mesa de sinuca.
Numa hora incerta do final da tarde, aconteceu a algaravia dos homens e mulheres que assistiam às partidas, o mergulho inexorável da última bola na caçapa de alumínio, o olhar triste e vasto de Débora e a rajada de vestido azul, quando deixou o salão às pressas. Entre o instante de risos, quando tinha visto Horácio contar o dinheiro, e o instante em que aparecera no quarto, no útero da noite avançada (apoiando-se à porta, louco por cama e contra todo resmungo de Débora, que piscava por causa da luz acesa), havia uma enorme zona de silêncio.
Débora estava sentada diante do nublado espelho do guarda-roupa. Nua, de costas para Mábio e penteava o cabelo em silêncio. Quando viu o par de olhos chamejantes fixando-a do fundo do espelho, algo a trouxe da lembrança dos prados verdes e das tardes de mar para a manhã nublada. Então, voltou para a cama. Depois, invertida no espelho, Mábio via-lhe parte do cabelo negro esparramando-se sobre o ombro e o delicado leito da medula fundindo-se sutilmente às pequenas nádegas.
A barriga crescia vagarosamente. Provavelmente Mábio nem perceberia a mudança, de tão distraído. Barriga mínima: talvez herança da mãe. Ou talvez o fruto de Mábio fosse de parco caroço. Talvez isso. Apenas isso.
– É no que dá, passar a noite na chuva, como um cachorro sem dono, ela disse, limpando com a ponta dos dedos a maré dos olhos.
Jogada a um canto do quarto, havia uma valise de couro, que, surrada de tantas viagens inesperadas e arremessos súbitos em quartos de hotéis baratos, acabara por perder o brilho e exalava um cheiro de coisas antigas, quando aberta. Débora permaneceu agachada sobre ela o tempo indispensável para retirar o mercúrio, o esparadrapo e a gaze. Limpou a ferida da perna de Mábio e fez o curativo. Depois, foi ao banheiro. Arrumou sobre a pia o pedaço de sabonete, a lâmina de barbear e o espelho. "Pronto”, ela disse.
Auxiliado por ela, Mábio vestiu-se. Foi para o banheiro com uma toalha jogada sobre o ombro. "Vista-se também; é tarde para andar assim pelo quarto”. Encolhendo-se sobre o estômago, livrou-se do vômito que lhe causava ânsias desde cedo. Em seguida, por duas vezes tentou afinar o bigode, mas estragou uma das pontas e preferiu livrar-se dele. Vendo o olhar sério que o encarava do fundo do espelho, pensou na crosta de estragos invisíveis que o tempo vai deixando silenciosamente sobre os objetos e as pessoas. Lembrou-se da mãe, a essa hora da manhã costurando na sala, perto da janela que se abria para o quintal, onde nessa época do ano acontecia o incêndio das roseiras vermelhas. Falou sobre isso para Débora.
Ela não o ouviu, absorta na contemplação da paisagem. A maioria das casas próximas ao rio eram construídas sobre palafitas, portas e janelas cerradas. Na vasta desolação cinzenta, cinco araras vermelhas passaram gritando, quase roçando com as asas o céu que parecia feito de espuma. Depois ficou apenas o silêncio sobre o mundo. Mábio voltou do banheiro alisando o cabelo com os dedos.
– Pode demorar um pouco, Mábio, mas a enchente atingirá o hotel.
– Vamos, ele disse.
Caminharam ao longo do corredor escuro e úmido. Ele ia à frente, meio fatigado, claudicando a perna direita; ela tinha os olhos fixos na tênue poça de luz do final do corredor.
A coisa de que eu mais gostava lá em casa, nesta hora do dia, era ficar à mesa da cozinha, olhando a luz que se coava por uma telha de vidro e caía direto sobre a mesa. E eu me lembro bem das tardes em que chegava mais cedo da escola, andando pelos campos próximos, até nossa casa. Tirava os sapatos, corria por um estreito caminho entre palmeiras e ia me sentar na areia, ficando lá às vezes até o escurecer, quando então o céu inchava de estrelas e as últimas jangadas dos pescadores cortavam o horizonte. Poderei um dia mostrar isso à criança? Algum dia poderei?
– Passa da época de sairmos daqui, Mábio...
– Tão logo a chuva acabe, iremos embora.
– Tenho medo de você sumir novamente nos garimpos e eu ter que continuar cozinhado aqui também.
– Não desta vez.
– Antes você também prometeu. Já se passaram mais de dois anos. O que temos hoje, além do que possuíamos quando saímos de casa?
– Agora será diferente...
Chegaram à sala dos pássaros, que estava vazia. As gaiolas ficavam penduradas nas paredes, cobertas por panos escuros. Uma única lâmpada amarela brilhava no teto. Débora saiu por uma porta lateral e sumiu na cozinha.
Para enfrentar o dono do hotel, que fazia contas num caderno imaginário, Mábio tossiu e bateu com os nós dos dedos na mesa de recepção.
– Queria saber o que aconteceu com os pássaros, disse.
– A chuva faz com que murchem, o outro respondeu sorrindo e sem levantar os olhos.
Talvez por um simples costume do corpo, os homens e as mulheres já haviam se reunido no salão. A claridade das lâmpadas suspensas liquefazia-se no ambiente. Mesas de madeira dispunham-se em forma de semicírculo, de dois lados do salão onde se bebia e comia. A mesa de sinuca ficava no centro. Mábio ficou encostado à porta, reconhecendo os mesmos rostos do dia anterior. Horácio, branco e alto e com o cabelo vermelho assanhado, estava ao lado da porta da rua, atrás de algumas garrafas de cerveja. Perto dele, o capanga. Calados, os homens olharam Mábio, até que uma mulher pegou a bola branca e ficou jogando-a contra as tabelas. Em coro, os homens desviaram o olhar de Mábio para a mulher, e, em seguida, para a porta de entrada: na rua, a chuva recomeçava.
– Parece que vai chover o ano inteiro, suspirou a mulher que brincava com a bola.
– É o inverno, apenas começando, disse um dos homens.
– E nós, senhor Mábio, quando começamos?, perguntou o Horácio.
– Quando o inverno passar, eu creio, respondeu Mábio.
Uma gargalhada eclodiu pelo salão, quebrando o encanto da chuva. Mábio pediu uma dose de vermute. Às costas dele, a gaveta foi aberta. Podia imaginar a mão emborcada puxando violentamente a gaveta, abrindo-a, o choque ríspido das bolas sendo puxadas duas a duas, ou três a três, conforme a mão, e devia ser três a três e a mão devia ser de Horácio. E outra vez o choque das bolas sobre a mesa.
Os que contemplavam o vazio da rua descobriram o homem primeiro. Mábio o encontrou na curiosidade dos outros e na de Horácio, ele na porta, a mochila de couro presa às costas, gotejando chuva pela capa, derramando os olhinhos oblíquos e miúdos pelo salão. Houve um momento em que abandonou a atitude de pedra e sacudiu-se como um galo. Passou pelos homens, deixando atrás de si um pequeno desastre de chuva e lama. Disse guturalmente "Senhores”, com um leve cumprimento de cabeça, indo em seguida para a recepção.
Ficaram sabendo que o homem não viera para ficar, que pagara três diárias adiantadas, andara perguntando sobre farmácias, remédios e sobre parceiro para umas partidas de sinuca. Cerca de meia hora depois, reapareceu. Vestia uma camisa xadrez e usava o cabelo negro penteado para trás. Os olhos de índio espalharam-se novamente pelo recinto. Pediu uma dose de aguardente, que bebeu de um gole. Depois, ficou junto de Mábio, observando, até que, parecendo retornar de um país distante, anunciou:
– Dois dias a pé pela mata. Os homens estão morrendo de malária no acampamento. Nenhum avião tem descido. Tive que atravessar uma longa trilha caiapó, até chegar ao porto de um pequeno vilarejo e conseguir a embarcação.
– Você veio de barco?, perguntou Mábio.
– Não propriamente um barco, respondeu o homem, mas algo como uma canoa para quatro pessoas, com motor de popa. Acompanhava-me um sujeito que nunca dizia nada. Subimos o rio durante a noite inteira e um pedaço da manhã, debaixo de um chuvisco irritante, e ameaçados pelos troncos que flutuavam no rio.
– Então há barcos passando?, perguntou Mábio.
– Não, não há, eu consegui convencer o sujeito a me trazer gastando o dinheiro de mais de um mês de trabalho. Ele deve ficar aqui três dias, até conseguir remédios. Depois retornaremos.
Durante umas duas horas, contou sobre as noites e os dias no acampamento da selva; como a malária começara um mês antes e havia dizimado oito homens. Pediu uma garrafa de aguardente que esvaziou até a metade, porém conservava os mesmos olhinhos imperturbáveis, serenos, dois lagos escuros, num rosto de pouco mais de vinte e cinco anos, moreno e liso. Revelou também como tinha acordado em certa manhã remota de sua vida para encontrar morta a mãe, no quarto ao lado. Foi quando decidira sair pelo mundo. Falou quase ininterruptamente, acompanhado pela platéia atenta, silenciosa, até que sua voz se tornou cansada e pedregosa. Então se calou.
Débora aparecera duas vezes trazendo carne frita. Na terceira vez, servia uma mesa próxima à de Horácio, quando este a abraçou pela cintura, suspendendo-a __ um breve, agitado instante. Depois a soltou, dando-lhe uma palmada nas nádegas. Desfazendo-se do avental e cuspindo palavrões, ela correu para o quarto. Os homens acompanharam a cena calados, enquanto Horácio e o capanga riam. Mábio desceu do banco, pegou uma cadeira de ferro e caminhou para a mesa de Horácio, o rosto ultrajado, cego. Talvez fosse realmente bater com ela, mas o pararam a tempo.
– Acalme-se, disse o dono do hotel, colocando-se à frente de Mábio. __ Você não tem nenhuma chance, eles estão armados.
Mábio afastou a mão do homem e pousou a cadeira no piso. Foi para o quarto, fazendo o percurso de volta pela penumbra do corredor. Demorou alguns segundos, em pé, segurando o trinco da porta. Encontrou Débora deitada de bruços na cama. Aos soluços, ela mastigava um rosário de impropérios. Trancou a porta e deitou-se ao lado dela. Esteve falando sobre a dificuldade da vida de ambos e, como das outras vezes, prometeu irem embora logo que passassem as chuvas. Ela o ouviu sem contestar, porque algo na voz dele vinha murmurante como a água. Dizia que seria diferente, que em breve estariam outra vez ouvindo o mar. Ela terminou por se aquietar, dormindo com um braço atravessado sobre ele.
Ele também adormeceu, e acordou no meio da tarde, com a gritaria dos homens no salão, abafada pelo barulho da chuva que recrudescera no telhado de amianto. Levantou-se __ o braço de Débora caiu suavemente na cama. Saiu na ponta dos pés, encostando a porta. Horácio e o estranho jogavam. Havia apostas para os dois lados. As mulheres torciam pelo estranho. No final da partida, aproximando-se do companheiro de Horácio, Mábio disse:
– Aposto todo o meu dinheiro como seu patrão perde as partidas seguintes.
– Como tem tanta certeza?, o homem perguntou.
– Palpite.
– Aceito.
Agora que observava os dois jogando, uma espécie de ansiedade de águas incertas havia ancorado nele. Apostara o único dinheiro que lhe restava. Se perdesse, já imaginava que teria de mandar Débora embora primeiro, seguindo-a depois. Sentia ferver dentro de si um enorme desejo de vingança. "Só poderia mesmo apostar em outro, já que não sou bom o suficiente para derrotá-lo”, pensou.
O capanga de Horácio assistia às partidas fumando calado.
Com grande facilidade, o estranho ganhara a primeira partida. Horácio reclamava do calor que fazia no salão fechado. A pedido do rapaz, as portas foram abertas: a cidade jazia diluída na chuva, uma única torrente vertical, sem princípio nem fim. O rapaz jogava concentrado, em silêncio, como se ele próprio fosse uma extensão do taco, tornando o olho esquerdo mais e mais apertado a cada tacada, medindo cada passo e cada inclinar sobre a mesa com uma cautela cirúrgica. Então venceu a terceira partida e disse que se sentia cansado após tantas partidas.
Afastava-se em direção à sala dos pássaros, quando ouviu a suas costas e para que todos ouvissem:
– Maricas! Só pode ser maricas.
– Como, senhor?, perguntou o rapaz, virando-se e vendo Horácio, enorme, vacilante, os olhos vermelhos, segurando uma faca.
– Maricas, estou dizendo que só pode ser maricas, repetiu.
– Sinto muito, senhor, mas não sou.
Em seguida, Mábio viu quando o rapaz entrou rapidamente na sala dos pássaros e desapareceu no corredor, seguido de Horácio; este, acompanhado do capanga. Mais tarde, quando lembrasse o episódio, tentaria imaginar como havia sido o movimento de volta: o primeiro disparo, o capanga correndo na frente, saindo para a chuva; o segundo disparo, Horácio estrebuchando na madeira do assoalho, e o gemido de morte que se ouviu e que não se poderia dizer se ocorrera antes ou após o grasnido de um pássaro assustado na gaiola.
No silêncio que nasceu, viu quando o homem guardou a pistola e parou diante do corpo inerte de Horácio. Atrás, estava Débora, esmaecida na pouca luz.
– Gostaria que o senhor entregasse minhas coisas ao homem do barco, na terça-feira. Ele saberá o que fazer com elas, disse o rapaz, da porta, para Mábio.
Puxou a gola da camisa sobre a nuca. Saiu para a chuva, e foi a última vez que o viram.
Sobre o balcão, estava o dinheiro da aposta. Ao ver Débora guardando-o entre os seios, Mábio disse:
– Pegue só a metade, que é nossa. Não foi uma aposta muito honesta.
Ela, porém, guardou-o todo.
Era quase o final da tarde. Mábio pediu uma garrafa de uísque. Bebia a quarta dose, quando o pistoleiro de Horácio apareceu acompanhado de três policiais. Um deles parou de frente para Mábio. Encarando-o, perguntou:
– Quem matou o homem?
O dono do hotel, que sumira no momento da confusão, agora lavava copos, agachado atrás do balcão. Foi quem respondeu:
– Um sujeito que veio e sumiu na chuva.
– E por quê?
– Problemas com jogo.
Mábio se lembraria perfeitamente do corpo suspenso, carregado para fora, pelos quatro homens. Bebeu um grande gole da garrafa. No começo da noite, três cobras-do-ar, quase transparentes sob as lâmpadas, debateram-se entre garrafas vazias, estiveram voando e fazendo festa pelo salão. Atravessaram em seguida a porta por onde entrara e saíra tanta gente naquele dia. Exausto e embriagado, Mábio adormeceu debruçado sobre a mesa. Foi acordado no começo da madrugada, pelo canto de um socó. O salão estava completamente imerso nas trevas. Tateando no escuro, conseguiu achar o interruptor. Ficou cego momentaneamente, com as mãos sobre os olhos, por causa da súbita claridade. Abriu as portas e viu a rua adormecida. A chuva cessara e soprava uma brisa fria. Ainda havia nuvens no céu, prateadas pela luz da lua, e também algumas estrelas. De retorno ao quarto e acendendo a lâmpada, pensou acordar a Débora mas, de repente, sentindo-a tão feliz no sono, preferiu desligar a luz. Deitou-se, sorrindo, e puxou o lençol sobre os dois, sem dar muita importância à perna machucada.



imagem retirada da internet: Ernest Descals

terça-feira, 29 de setembro de 2015

O olho, conto de Alice Munro


Alice Munro wins Man Booker International Prize
 
Quando eu tinha cinco anos, de repente meus pais apareceram com um menininho, que minha mãe disse que era o que eu sempre quisera. De onde ela tirou essa ideia eu não sei. Ela deu uma bela enfeitada naquilo, tudo inventado, mas difícil de contrariar.
Aí um ano depois apareceu uma menininha, e de novo foi uma balbúrdia, mas menos que da primeira vez.
Até a época do primeiro bebê, eu não me lembro de ter sentido algo diferente do que aquilo que a minha mãe dizia que eu estava sentindo. E até aquela época, a casa toda era tomada pela minha mãe, pelos passos dela, pela sua voz, por aquele cheiro poeirento, mas funesto que ocupava todos os cômodos mesmo quando ela não estava dentro deles.
Por que eu digo funesto? Eu não tinha medo. Não é que a minha mãe me dissesse exatamente como eu devia me sentir a respeito das coisas. Ela era uma autoridade no assunto, isso nem se questionava. Não só no caso de um irmão mais novo, mas também quanto ao cereal Red River, que me fazia bem e de que, portanto, eu devia gostar. E quanto à minha interpretação do quadro que ficava no pé da minha cama, que mostrava Jesus tolerando que as criancinhas viessem até ele. Tolerar significava outra coisa naquele tempo, mas não era nisso que a gente se concentrava. Minha mãe apontava a menininha meio escondida num canto porque queria ir até Jesus, mas era tímida demais para isso. Aquela era eu, minha mãe dizia, e eu achava que era, mas não teria entendido isso sem ela me dizer e na verdade preferia que não fosse assim.
O que me deixava tristíssima mesmo era a Alice no país das maravilhas imensa e presa no buraco do coelho, mas eu ria, porque a minha mãe parecia estar adorando.
Mas foi com a chegada do meu irmão e com aquele falatório todo sobre como ele era um tipo de presente pra mim que eu comecei a aceitar o quanto as certezas que minha mãe tinha a meu respeito diferiam das minhas próprias.
Acho que isso tudo estava me preparando para o momento em que a Sadie veio trabalhar para nós. Minha mãe tinha se recolhido para sabe-se lá qual território que ela ocupava com os bebês. Sem ela por ali o tempo todo, eu podia pensar no que era verdade e no que não era. Eu já sabia o suficiente para não falar dessas coisas com ninguém.
A coisa mais estranha da Sadie -apesar de não ser muito comentada lá em casa- era que ela era uma celebridade. A nossa cidade tinha uma rádio onde ela tocava violão e cantava o tema de abertura da programação, que ela mesma tinha composto.
"Olá, olá, olá, todo mundo...".
E meia-hora depois era, "A-deus, a-deus, a-deus, todo mundo." Entre um e outro, ela cantava músicas que as pessoas pediam e também algumas que ela mesma escolhia. As pessoas mais sofisticadas da cidade tendiam a rir das músicas dela e da rádio toda, que diziam que era a menor do Canadá. Essas pessoas escutavam uma estação de Toronto que transmitia canções populares da época - "Three little fishes and a mommy fishy too..." - e Jim Hunter berrando as desesperadas notícias da guerra. Mas as pessoas das fazendas gostavam da rádio local e daquelas canções que a Sadie cantava. A voz dela era forte e triste e ela cantava sobre a solidão e a dor.
Apoiada na cerca fria
De um curral imenso
Olhando pela trilha ao fim do dia
É só em você que eu penso
Quase todas as fazendas daquele canto do país tinham sido desmatadas e ocupadas havia coisa de cento e cinquenta anos, e de quase qualquer casa de fazenda dava para avistar outra casa de fazenda a poucos pastos de distância. Ainda assim, as músicas que os fazendeiros queriam ouvir falavam todas de vaqueiros solitários, do encanto e da decepção de lugares distantes, dos crimes horrorosos que faziam criminosos morrerem com o nome da mãe nos lábios, ou o de Deus.
Era isso que a Sadie cantava com tanto sentimento num tom de contralto encorpado, mas trabalhando com a gente ela era cheia de energia e de confiança, gostava de conversar e em especial de conversar sobre si própria. Normalmente não tinha ninguém para ouvir o que ela dizia, só eu. As ocupações dela e as da minha mãe as mantinham separadas quase o tempo todo e de qualquer forma eu acho mesmo que elas não teriam gostado de conversar. Minha mãe era uma pessoa séria, como já insinuei, que tinha dado aulas na escolinha antes de dar aulas para mim. Talvez ela tivesse gostado se a Sadie fosse alguém que ela pudesse ajudar, ensinando a não dizer "Cês quer". Mas a Sadie não dava muitos indícios de querer ajuda de quem quer que fosse, ou de querer falar de um jeito diferente de como sempre falara.
Depois da ceia, que era a refeição do meio-dia, a Sadie e eu ficávamos sozinhas na cozinha. Minha mãe aproveitava para tirar uma soneca e, se estivesse num dia de sorte, os bebês dormiam também. Quando ela acordava, punha um vestido diferente, como se estivesse esperando uma tarde tranquila, mesmo que seguramente fosse haver mais fraldas para trocar e também mais daquela atividade desagradável que eu me esforçava para não ver, a menorzinha chupando um peito dela.
Meu pai também tirava uma soneca -talvez uns quinze minutos na varanda com o "Saturday Evening Post" cobrindo a cara antes de voltar para o celeiro.
A Sadie esquentava água no fogão e lavava a louça, com a minha ajuda e com as persianas baixadas para não deixar entrar o calor. Quando a gente acabava, ela esfregava o chão e eu secava, com um método que eu tinha inventado - patinando de um lado para outro com panos de chão nos pés. Aí a gente retirava as espirais de papel pega-mosca amarelo e grudento que tinham sido colocadas depois do café da manhã e que àquela altura já estavam pesadas, cheias de moscas pretas mortas ou que zumbiam quase mortas, e pendurava as espirais novinhas, que estariam cheias das recém-mortas na hora do jantar. Tudo isso enquanto a Sadie me falava da vida dela.
Nessa época eu não conseguia julgar com facilidade a idade dos outros. As pessoas eram crianças ou adultas e eu achava que ela era adulta. Talvez ela tivesse dezesseis, talvez dezoito ou vinte anos. Fosse qual fosse sua idade, ela anunciou mais de uma vez que não estava com pressa de casar.
Frequentava bailes todo fim de semana, mas ia sozinha. Sozinha e só para si, dizia.
Ela me falou dos salões de baile. Tinha um na cidade, perto da rua principal, onde ficava a pista de curling no inverno. Você pagava um dime por uma dança, aí subia e dançava numa plataforma com as pessoas te encarando em volta, mas não que ela se incomodasse com isso. Ela sempre gostava de pagar ela mesma o seu dime, para não ficar em dívida. Mas às vezes um sujeito chegava antes dela. Ele perguntava se ela queria dançar e a primeira coisa que ela dizia era, E você sabe? Você sabe dançar? ela perguntava, seca. Aí ele dava uma olhada esquisita pra ela e dizia que sim, como quem quer dizer senão por que eu estaria aqui? E no fim o que ele chamava de dança em geral era um arrasta-pé com aquelas mãozonas carnudas agarrando a Sadie. Às vezes ela simplesmente deixava o sujeito ali perdido, saía dançando sozinha - que era o que ela gostava mesmo de fazer, afinal. Ela terminava a dança, que já estava paga, e se o camarada que pegava o dinheiro reclamasse e quisesse obrigá-la a pagar por dois quando ela era uma só, ela dizia para ele parar com isso. Eles podiam ficar todos rindo dela dançando sozinha se quisessem.
Dea Lellis/Arte Folha
O outro salão de baile ficava logo na saída da cidade, na estrada. Lá você pagava na porta, e não era por uma dança, mas pela noite toda. O nome do lugar era Royal-T. Ela também pagava sozinha, ali. Normalmente tinha uma classe melhor de dançarinos, mas mesmo assim ela tentava dar uma olhada para ver como eles se viravam antes de deixar que a tirassem para dançar. Em geral eram uns sujeitos da cidade enquanto que os do outro salão eram mais country. Com passos melhores - os da cidade - mas não era sempre com os passos que você tinha que se preocupar. Era com onde eles queriam segurar. Às vezes ela tinha que mandar eles pastarem e dizer o que ia fazer com eles se não parassem com aquilo. Ela deixava bem claro que tinha ido ali dançar e tinha pagado ela mesma. Além de tudo ela sabia onde acertar uma pancada. Aquilo deixava eles bem certinhos. Às vezes eram bons de dança e ela conseguia se divertir. Aí quando tocavam a última dança ela corria direto pra casa.
Ela não era como as outras, dizia. Ela não queria ser fisgada.
Fisgada. Quando ela dizia isso, eu via um anzol imenso descendo, com umas criaturinhas malvadas na ponta te enganchando de um jeito que você nunca mais poderia sair. A Sadie deve ter visto algo assim no meu rosto porque disse para eu não ficar com medo.
"Você não -precisa ter medo de nada nesse mundo, só se cuide."
"Você e a Sadie vivem conversando," minha mãe disse.
Eu sabia que viria alguma coisa que merecia cuidado, mas não sabia o quê.
"Você gosta dela, né?"
Eu disse que sim.
"Bom, claro que gosta. Eu também gosto."
Eu torci para aquilo ter acabado e por um momento pensei que tinha mesmo.
Aí, "Você e eu não ficamos muito juntas agora que a gente teve os nenês. Eles não deixam muito tempo pra gente, né?
"Mas a gente ama os nenês, né?"
Disse logo que sim.
Ela disse, "De verdade?"
Ela não ia parar se eu não dissesse de verdade, então eu disse.
*
Minha mãe queria muito alguma coisa. Será que eram boas amigas? Mulheres que jogavam bridge e tinham maridos que iam trabalhar de terno com colete? Não exatamente, e nem adiantava esperar por isso mesmo. Será que era eu como eu era antigamente, com os cachinhos no cabelo que eu não me incomodava de ficar bem quietinha enquanto ela ajeitava, ou o catequismo que eu fazia direitinho? Ela não tinha mais tempo para cuidar dessas coisas agora. E uma parte de mim estava ficando traiçoeira, embora ela não soubesse por quê, e eu também não sabia. Eu não tinha feito amigos da cidade na catequese. Em vez disso, eu idolatrava a Sadie. Ouvi minha mãe dizer para o meu pai. "Ela idolatra a Sadie."
Meu pai disse que a Sadie era um presente de deus. O que isso queria dizer? Ele parecia animado. Talvez quisesse dizer que não ia defender nem uma nem outra.
"Eu queria que a gente tivesse calçadas decentes para ela," minha mãe disse. "Talvez se a gente tivesse calçadas decentes ela aprendesse a patinar e fizesse uns amigos."
Eu queria mesmo ter patins. Mas agora, sem saber por quê, eu sabia que nunca ia admitir que queria.
Aí minha mãe disse alguma coisa sobre ficar melhor quando as aulas começassem. Algo sobre eu ficar melhor ou algo a respeito da Sadie que ia ficar melhor. Eu não queria ouvir.
A Sadie estava me ensinando umas músicas dela e eu sabia que eu não cantava muito bem. Eu torcia para não ser aquilo o que tinha que ficar melhor ou acabar. Eu não queria, de verdade, que aquilo acabasse.
Meu pai não tinha muito pra dizer. Eu era problema da minha mãe, a não ser mais tarde quando acabei ficando bem boca-suja e tinha que ficar de castigo. Ele estava esperando meu irmão ficar mais velho e passar a ser problema dele. Menino não tinha como ser tão complicado.
E claro que o meu irmão não foi. Ele cresceu bem tranquilo.
*
Agora as aulas começaram. Começaram tem umas semanas, antes de as folhas ficarem vermelhas e amarelas. Agora elas tinham quase todas ido embora. Eu não estou com o meu casaco da escola, mas com o melhor, aquele com os debruns de veludo escuro no punho e no colarinho. Minha mãe está com o casaco que ela usa para ir à igreja, e com um turbante que cobre quase todo o cabelo dela.
Minha mãe está dirigindo para sabe-se lá onde é que nós estamos indo. Ela não dirige muito, e sua direção é sempre mais solene e no entanto mais incerta que a do meu pai. Ela buzina em tudo quanto é esquina.
"Isso," ela diz, mas leva um tempo para colocar o carro na vaga.
"Então chegamos." Aparentemente, a voz dela quer ser encorajadora. Ela encosta na minha mão para me dar uma chance de segurar a dela, mas eu finjo que não percebo e ela tira a mão.
A casa não tem jardim nem calçada. É bacana, mas meio feia. Minha mãe ergueu a mão enluvada para bater na porta mas no fim nem precisamos. Abrem para nós. Minha mãe acabou de começar a me dizer alguma coisa encorajadora - alguma coisa meio, Vai ser mais rápido do que você pensa - mas ela não termina. O tom em que ela falou comigo foi algo severo, mas levemente tranquilizador. Ele muda quando abrem a porta e vira uma coisa mais contida, mais baixinha, como se ela estivesse curvando a cabeça.
A porta foi aberta para um pessoal sair, e não só para a gente entrar. Uma das mulheres que estão saindo fala por sobre o ombro com uma voz que não passa nem perto de tentar ser suave.
"É para ela que a moça trabalhava, e para a menininha ali."
Aí uma mulher que está vestida bem elegante vem falar com a minha mãe e ajuda a tirar o casaco dela. Isso feito, minha mãe tira o meu casaco e diz para a mulher que eu gostava especialmente da Sadie. Ela espera que seja tudo bem ter me trazido.
"Ah, coitatinha," a mulher diz e a minha mãe encosta de levinho em mim para me fazer dizer oi.
"A Sadie adorava criança," a mulher disse. "Adorava mesmo."
Eu percebo que tem mais duas crianças ali. Meninos. Eu conheço os meninos da escola, sendo um deles da primeira série, comigo, e o outro mais velho. Eles estão espiando lá de onde provavelmente é a cozinha. O mais novo está enfiando um biscoito inteirinho na boca de um jeito cômico e o outro, mais velho, está fazendo uma cara de nojo. Não para o enfiador de biscoito, mas para mim. Eles me odeiam, claro. Os meninos ou te ignoravam quando te encontravam num lugar que não fosse a escola (eles te ignoravam lá também) ou faziam essas caretas e te xingavam de uns nomes horrorosos. Quando eu tinha que chegar perto de um deles eu travava e não sabia o que fazer. Claro que era diferente quando tinha gente adulta por perto. Esses meninos ficaram quietos, mas eu me senti um pouquinho mal até alguém puxar os dois para dentro da cozinha. Aí eu me dei conta da voz especialmente delicada e interessada da minha mãe, mais educada até que a da porta-voz com quem ela estava falando, e pensei que talvez a careta tivesse sido para ela. Às vezes as pessoas imitavam a voz dela quando ela ia me chamar na escola.
A mulher com quem ela estava falando e que parecia ser a encarregada de tudo ali estava levando a gente para uma parte da sala onde um homem e uma mulher estavam sentados num sofá, com cara de quem não estava entendendo bem por que estava ali. Minha mãe se abaixou e falou com eles de um jeito muito respeitoso e me apontou para os dois.
"Ela gostava demais da Sadie," ela disse. Eu sabia que era para eu dizer alguma coisa nessa hora, mas antes que eu conseguisse a mulher sentada ali explodiu num urro. Ela não olhou para nenhuma de nós duas e o som que ela fazia parecia o som que você faz quando algum animal te morde ou te rói. Ela batia nos braços como se estivesse tentando se livrar daquela coisa, mas a coisa não ia embora. Ela olhava para a minha mãe como se a minha mãe fosse a pessoa que tinha que fazer alguma coisa para resolver aquilo.
O velho disse para ela se acalmar.
"Está sendo muito duro para ela," disse a mulher que estava conduzindo a gente. "Ela não sabe o que está fazendo." Ela se curvou ainda mais e disse, "Ai-ai-ai, você vai assustar a menininha".
"Vai assustar a menininha," o velho disse obediente.
Quando ele terminou de dizer isso, a mulher não estava mais fazendo aquele barulho e dava tapinhas nos braços arranhados como se não soubesse o que tinha acontecido com eles.
Minha mãe disse, "Coitada."
"E também filha única," disse a guia. Para mim ela disse, "Não se incomode."
Eu estava incomodada, mas não com os urros.
Eu sabia que a Sadie estava em algum lugar e eu não queria vê-la. Minha mãe não tinha chegado a dizer de fato que eu ia ter que ver, mas também não tinha dito que não.
A Sadie tinha morrido voltando do salão de bailes Royal-T. Tinha sido atropelada por um carro naquela estradinha de pedra entre o estacionamento lá do salão e o começo da calçada de verdade da cidade. Ela devia estar correndo como sempre, e com certeza achou que dava para os carros verem que ela estava ali, ou que ela tinha tanto direito de estar ali quanto eles, e talvez o carro atrás dela tenha dado uma guinada ou talvez ela não estivesse bem onde achava que estava. Ela foi pega por trás. O carro que a atropelou estava saindo da frente do carro que vinha atrás, e esse segundo carro estava tentando fazer o primeiro entrar numa rua da cidade. O pessoal tinha bebido no salão, apesar de não ter bebida à venda lá dentro. E sempre tinha gente buzinando e gritando e saindo rápido demais quando a dançaria acabava. A Sadie apressada sem nem ter farol ia agir como se os outros é que tivessem que sair da frente dela.
"Uma menina sem namorado indo nos bailes a pé," disse a mulher que continuava sendo simpática com a minha mãe. Ela falou bem baixinho e minha mãe murmurou alguma coisa lamentosa.
Era pedir para alguma coisa dar errado, a mulher simpática disse mais baixo ainda.
Eu tinha ouvido umas conversas em casa que não tinha entendido. Minha mãe queria que fizessem alguma coisa que possivelmente tinha a ver com a Sadie e o carro que a atropelou, mas meu pai disse para ela deixar de lado. A gente não tem nada que se meter com as coisas da cidade, ele disse. Eu nem tentei entender isso tudo porque estava tentando nem pensar na Sadie, muito menos no fato de ela estar morta. Quando eu percebi que a gente estava indo para a casa da Sadie eu quis não ir, mas não vi jeito de escapar a não ser me comportando de um jeito imensamente feio.
Agora, depois do ataque da mulher, parecia que a gente podia dar meia-volta e ir para casa. Eu nunca ia ter que admitir a verdade, e a verdade era que eu me mordia de medo de qualquer cadáver.
Bem quando pensei que isso podia ser possível, ouvi minha mãe e a mulher com quem agora ela parecia estar tramando alguma coisa falarem do pior de tudo.
Ver a Sadie.
Sim, minha mãe estava dizendo. Claro, a gente tem que ver a Sadie.
Sadie morta.
Eu tinha ficado com os olhos bem abaixadinhos, vendo quase nada além daqueles dois meninos que mal eram mais altos que eu, e os velhos que estavam sentados. Mas agora minha mãe estava me levando pela mão em outra direção.
Tinha um caixão na sala o tempo todo mas eu estava achando que era outra coisa. Por causa da minha falta de experiência eu não sabia exatamente a cara de uma coisa dessas. Uma prateleira de acomodar flores, aquele objeto de que a gente estava se aproximando podia ser, ou um piano fechado.
Talvez as pessoas que estavam em volta tivessem dado algum jeito de disfarçar o tamanho e o formato e a função real daquilo. Mas agora as pessoas estavam respeitosamente abrindo caminho e minha mãe falou com uma nova voz, muito baixinha.
"Agora, vem" ela me disse. A delicadeza dela me soou odiosa, triunfante.
Ela se abaixou para olhar meu rosto, e isso, eu tinha certeza, era para evitar que eu fizesse exatamente o que tinha acabado de me ocorrer - ficar com os olhos bem apertados. Aí ela desviou o olhar de mim mas ficou com minha mão bem presa na sua. Eu acabei conseguindo baixar as pálpebras assim que ela tirou os olhos de mim, mas não fechei até o fim por medo de tropeçar ou de que alguém me empurrasse bem para onde eu não queria ir. Pude ver só um borrão das flores rígidas e o brilho da madeira envernizada.
Aí eu ouvi minha mãe fungando e senti que ela se afastava. A bolsa dela se abriu com um estalo. Ela tinha que pôr a mão lá dentro, então me soltou um pouco e eu consegui me libertar. Ela estava chorando. Foi ela ter que cuidar das lágrimas e da fungadeira que me deixou escapar.
Olhei bem para o caixão e vi a Sadie.
O acidente tinha poupado o pescoço e o rosto dela, mas eu não vi tudo isso de uma vez. Só tive a impressão geral de que nada nela estava tão feio quanto eu tinha temido. Fechei os olhos bem rápido, mas percebi que não conseguia evitar olhar de novo. Primeiro a almofadinha amarela que estava embaixo do pescoço dela e que também dava um jeito de cobrir a garganta e o queixo e a bochecha que eu podia ver com facilidade. O truque era ver um pouquinho dela depressa, aí voltar para a almofada, e na próxima vez dar conta de mais um pouquinho que não desse medo. E aí era a Sadie, ela toda ou pelo menos tudo que eu podia esperar ver do lado que estava à mostra.
Alguma coisa se mexeu. Eu vi, a pálpebra dela que estava do meu lado mexeu. Não estava abrindo ou abrindo pela metade, nada assim, mas erguendo só um nadinha como que para permitir, se você fosse ela, se você estivesse lá dentro dela, que você conseguisse enxergar por entre os cílios. Só para distinguir talvez o que era claro lá fora e o que era escuro.
Eu não fiquei surpresa na hora e nem um pouco assustada. Imediatamente, essa visão se encaixou em tudo que eu sabia da Sadie e de alguma maneira, também, no que quer que a experiência me reservasse de especial. E eu nem sonhei em chamar a atenção de mais alguém para o que estava ali, porque não era para eles, era completamente para mim.
Minha mãe tinha pegado a minha mão de novo e disse que estava na hora de a gente ir. Falaram mais umas coisas, mas antes que qualquer tempo passasse, pelo que me pareceu, a gente já estava lá fora.
Minha mãe disse, "Parabéns." Ela deu um apertão na minha mão e disse, "Então. Passou." Ela teve que parar para conversar com mais alguém que estava chegando na casa, e aí a gente entrou no carro para voltar pra casa. Passou pela minha cabeça que ela ia gostar que eu dissesse alguma coisa, ou quem sabe até que eu contasse alguma coisa para ela, mas não falei nada.
Nunca mais houve uma ocorrência desse tipo e na verdade a Sadie desapareceu bem depressa da minha memória, com o choque da escola, onde eu acabei dando algum jeito de me virar com uma estranha mistura de viver morta de medo e viver me exibindo. A bem da verdade um pouco da importância dela tinha desaparecido naquela primeira semana de setembro quando ela disse que tinha que ficar na casa dela agora para cuidar do pai e da mãe, então ela não ia mais trabalhar para nós.
E aí minha mãe descobriu que ela estava trabalhando na loja de laticínios.
Mas mesmo assim, por bastante tempo, quando eu pensava nela, eu nunca questionava o que eu achava que me tinha sido revelado. Bem, bem depois disso, quando eu não estava mais nada interessada em feitos sobrenaturais, eu ainda mantinha em mente que uma coisa daquelas tinha acontecido. Só que eu simplesmente acreditava, como você pode acreditar e na verdade até lembrar que um dia teve dentes de leite, desaparecidos hoje, mas mesmo assim reais. Até que um dia, um dia quando eu talvez já estivesse na adolescência, eu soube como que com um buraco esquisito nas entranhas que agora já não acreditava mais.


(Do livro Querida vida, da Companhia das Letras)


Tradução de Caetano W. Galindo.


 

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

A visita cruel do tempo, Jennifer Egan





 Jennifer Egan ganhou com seu livro A visita cruel do tempo (A visit From the Goon Squaq), da editora Intrínsica (2012), os mais importantes prêmios de 2011 nos EUA. Além do mais importante, o Pulitzer, acumulou ainda o National Book Critics Circle Award, o Los Angeles Times Book Prize e o Tournament of Books.



Duas publicações brasileiras fizeram comentários pouco relevantes sobre a autora. A revista Veja ressaltou a beleza de Jennifer Egan e observou que ela usou sapatos baixos por causa do calçamento de Paraty ao participar da Flip. E a Folha de São Paulo chamou de insípida a sua presença na mesa-redonda da qual participou.
Primeiro vou enumerar as coisas que me agradaram no romance A visita cruel do tempo, de Jennifer Egan.
Gosto das mudanças temporais, dos capítulos intercalados, das observações de sensações dos personagens (geralmente um só parágrafo) quando a ação fica suspensa para ser retomada mais à frente. Gosto dos cortes repentinos, quando a autora apresenta outro parágrafo em que mostra o personagem já no presente como no caso do safári em que há um enlevo entre a moça e o rapaz africano que dança e ela, Jennifer, salta até hoje e faz uma rápida reflexão de que aquele homem negro morrerá cheio de mulheres e filhos e seu neto migrará para os Estados Unidos onde se formará em robótica. E de que cada capítulo se refere a um personagem. Nada novo no front literário, mas que ela o usa com habilidade não se pode negar.
 O que me desgosta é que a autora trabalha com pesquisa. No final do livro, há uma lista de agradecimentos e se percebe que ela adentrou no mundo da música e das gravadoras por intermédio de pessoas que a levaram a este nicho e que Jennifer usou sua habilidade como jornalista (lembra Zola que anotou seis meses na vida de uma mina e de seus trabalhadores) para escrever muitos dos capítulos. Creio que ela se apresenta melhor e mais escritora quando trata dos sentimentos que são inerentes ao ser humano, independente do lugar e da profissão que exercem os personagens.
 Há também muito exotismo desnecessário como o safári africano ou a jornalista que vai “limpar” a imagem de um general genocida, imagina-se na África. Desgosto também da exagerada enumeração de músicas e de conjuntos musicais, além de termos técnicos da produção musical, tudo em nome de gerar uma verossimilhança.
 O que Egan quer mostrar é o lugar-comum de descrever a passagem do tempo. Não era necessário tanto fogo de artifício. Talvez bastasse mais fogo que artifício e o livro cumpriria sua missão.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Don Juan (narrado por ele mesmo), Peter Handke



UM LIVRO DE BOM GOSTO
A primeira vez em que Don Juan aparece é na peça espanhola de Tirso de Molina, no século XVII, segundo Ian Watt. Assim como Madame Bovary e Dom Quixote, Don Juan é um arquétipo cujo público se identificou de tal forma que o comportamento desse tipo de personagem produziu até mesmo os adjetivos derivados deles como bovarismo (menos comum e mais erudito), donjuanismo e quixotesco. A força do personagem – e seu arquétipo – seduziu autores de várias estirpes, como Molière, Kierkegaard, Ortega y Gasset e Camus, isso sem contar as versões em outras expressões artísticas e culturais.

Aqui, Don Juan aparece de surpresa para um sujeito retirado, cansado de leituras, que vive num semi-exílio em Port-Royal. A narrativa de Peter Handke pertence à categoria dos relatos acrônicos, ou seja, a mistura de épocas e personagens que não poderiam se encontrar, pois vivem em tempos diversos. O Don Juan que aparece para seu anfitrião, exímio cozinheiro, é o verdadeiro Don Juan que vence o tempo. A acronia vem cada vez mais freqüentando a literatura, já que é um tipo de fantástico suavizado e curioso.

O tempo em que se passa o romance é o atual, mas o Don Juan é o mesmo personagem mulherengo que se conhece. Misturam-se atitudes nobres e sofisticadas de Don Juan e máquinas, aviões e motos. O cerne do romance está na narração de Don Juan de suas aventuras. Embora o título seja Don Juan, com o subtítulo “Narrado por ele mesmo”, o romance tem na figura de um cozinheiro o seu narrador. Diferente dos outros Don Juans (inclusive o primitivo, o do dramaturgo Tirso de Molina, um Don Juan mais atrapalhado que propriamente um conquistador inveterado), este Don Juan carrega consigo a morte do filho. O luto empalidece um pouco a figura fogosa e aventureira que a imaginação popular consagrou. Don Juan aqui é Don Juan: em sete dias narra a história de aventuras com sete mulheres diferentes em sete diversos lugares.

Don Juan (narrado por ele mesmo), da Editora Estação Liberdade, é de autoria de Peter Handke, austríaco nascido em 1942. Handke é dramaturgo, romancista, roteirista de cinema e ensaísta. Entre suas obras, vale destacar a parceria com Wim Wenders, como roteirista, no filme Asas do desejo. Handke trabalha com um personagem absolutamente sedutor, mas sua narrativa não tem igual grau de sedução.

Peter Handke, contudo, consegue manter a narrativa de forma segura e, até certo ponto, envolvente. Não há grandes aventuras, nem muito menos peripécias eróticas. O que existe de sobra é um fascínio do narrador em assinalar o encanto da narração. É pela narração que Don Juan conquista as mulheres e é através do ato de narrar que nós tomamos conhecimento dos atos de Don Juan. É a mesma estratégia de Casanova. O que existe aqui é palavra e, como nas Mil e uma noites, o poder da palavra para dar realidade a fatos que desconhecemos se realmente existiram ou não.

O fato de o narrador ser cozinheiro também pertence ao campo da narração, ou seja, narrar é como cozinhar. Misturam-se vários ingredientes e temos um sabor, um prato, um degustar. “Eu cozinhava e Don Juan narrava”, escreve o narrador. Todos os Don Juans são variantes de um mesmo Don Juan. O personagem é um personagem, fruto da imaginação e da palavra. Levado a outras expressões artísticas, não apenas agora, mas desde que surgiu como lenda, somos levados a crer que não existe apenas um personagem verdadeiro. Todos os Don Juans pertencem ao imaginário coletivo e, logo, todos são verdadeiros, como, aliás, é a teoria do mito do ponto de vista antropológico. “Durante os sete dias no jardim da minha casa, entraram em cena outros e mais outros Don Juans: nos programas noturnos de televisão, na ópera, no teatro, bem como em carne e osso, na chamada realidade primária. Só que, pelo que meu Don Juan contou sobre si mesmo, finalmente entendi: todos os outros eram falsos Don Juans – inclusive o de Molière; e também o de Mozart.”

O leitor encontrará aqui uma história interessante. Peter Handke tem o domínio da narrativa, bom ponto de vista do narrador-cozinheiro e uma trama suave e delicada, que certamente agradará aos que sabem degustar um bom prato ou um bom livro.


imagem retirada da internet: peter handke

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Quarteto, Manuel Vázquez Montalbán



Manuel Vázquez Montalbán



Morte sob medida
     

      Em época de grandes transformações como a nossa é curioso observar a fixidez no romance policial que, se transgride suas regras, torna-se o romance propriamente dito, como é o caso, por exemplo, entre outros, de Rubem Fonseca. O que intriga é a permanência do “fixo” num tempo de “mudanças”. Montalbán insere comportamentos instigantes no gênero, mas não foge a seus preceitos.
        O romance policial pode ser de enigma (Agatha Christie) ou noir (Hammet, Chandler). Manuel Vázquez Montalbán (1939-2003), autor bastante conhecido, em Quarteto (publicado a primeira vez em 1988), encaixa-se no primeiro caso. A virtude do romance policial é seu defeito: tudo gira, previsivelmente, em torno de um crime e sua solução. Quando o leitor se defronta com um livro policial, ele, de antemão, sabe que irá encontrar alguns procedimentos básicos. O leitor médio culto do romance não-policial desconhece os comportamentos do narrador e trama. A diferença, entre inúmeras outras, está em que a literatura policial não apenas trabalha com clichês (a mais ordinária) como também (no caso da mais sofisticada) opera com expectativas apriorísticas.
        O título do livro se refere ao quarteto que é formado por Carlota, a vítima, pelo marido dela, Luis, e por outro casal: Pepa, vulgar e exuberante, e seu marido Modolell, amante de Carlota. O quarteto, que na verdade é um quinteto, contando com o narrador, vive num mundo sofisticado, rico e culto. Com a morte de Carlota, comparada a Ofélia do quadro de Everett Millais (1852), em virtude do afogamento e pela beleza, o grupo se desfaz. E, como soe acontecer nos romances policiais, todos são suspeitos. Esta suspeição do romance policial é que incita a curiosidade: o leitor invade um mundo de perguntas e incriminações, mundo este que ele pode inadvertidamente também um dia vir a pertencer ou, ao ler o romance, nele penetrar e ver-se também “suspeito”. Neste caso, o leitor é suspeito em alto grau: quer romper seu cotidiano, participar de uma trama intricada, vivenciar um mundo que não é o seu cotidiano.
        Montalbán é um escritor que detém todos os instrumentos para construir um relato não-policial. Sua pena é delicada, análise fina e singular dos personagens. Sua erudição compõe o narrador de forma natural e verossímil, nunca introduzindo uma intromissão desabrida e despropositada do narrador apenas para mostrar-se apto a produzir conhecimento distanciado do tema e da trama da história. Geralmente sua erudição serve para situar o personagem, fazê-lo atuar e, principalmente, para a análise que o narrador faz das situações. Não há, no romance policial, como fugir do lugar-comum que, de forma demolidora, reduz a construção refinada. Há um morto, seu crime e sua investigação, feita sempre de modo conservador e redundante. Chega a hora de o detetive, por exemplo, perguntar: “– O que o senhor estava fazendo na tarde de 16 de julho, entre as cinco da tarde e nove da noite?” O espectro se limita e o que era especular e grandioso enquadra-se no modelo mais ordinário. O curioso é que o leitor espera esta pergunta ou outra do gênero para ingressar num universo que ele conhece e nele sentir-se cômodo. É a segurança do conhecido, mais do que propriamente a sutileza da escrita, que o leitor reconditamente busca. O estilo requintado de Montalbán, de certa forma, contraria o princípio estilístico básico do romance policial que é ser claro, nítido, sem que o leitor perceba o estilo. E, se Montalbán segue o caminho dos romances policiais mais avançados, este procedimento não o exclui do método clássico.
         Até o romantismo, os gêneros eram fixos e a norma do fazer literário (da boa literatura) correspondia a não infringir as normas estabelecidas. Ora, o romance policial, como literatura de massa, carrega consigo um conceito deslocado no tempo. O romance policial é bom para o leitor quando não rompe justamente com o gênero, seu modelo e suas normas. Uma delas, da qual Montalbán não escapa, é a máxima de George Butor sobre o romance de enigma: “a narrativa policial superpõe duas séries temporais: os dias do inquérito, que começam com o crime, e os dias do drama que levam a ele”. Na segunda fase, lembra Todorov, os personagens não agem, descobrem.
        Cabe agora o comentário sobre esta edição. É ela patrocinada pelo Ministério da Cultura da Espanha. Penso que um órgão público deveria subsidiar autores de menor expressão de vendas e maior inventividade. E não um autor de forte apelo comercial, traduzido em vários idiomas. De qualquer forma, os leitores de Montalbán, autor de vasta bibliografia e traduzido em vários idiomas, não se sentem desapontados com este Quarteto de cinco pontas.
        Para terminar, lembremos que Quarteto repete a fórmula que nomeio “construção por omissão” do romance de Agatha Christie que à sua época foi “inovador”: O assassinato de Roger Ackroyd. É uma boa leitura e, por não fugir ao gênero, certamente agradará àqueles que o lerão. (RCF)

terça-feira, 22 de setembro de 2015

O último telefonema à mãe, poema RCF


 
O dom de falar ou ouvir como se voz não existisse
e tudo fosse um pensamento apenas, um pensamento
que já existisse pronto para repetir a frase que será
dita e será ouvida e apenas quero sussurrar aos pensamentos
surdos dela que a amo e que não me deixe, porque a perco
em carne e osso como se ela andasse com a mão estendida
de socorro, dormisse com a mão estendida de socorro
e nem ouvido e mão eu pudesse alcançar, como se mão
também tivesse perdido, pensamento e audição, fosse mão
vazia e inútil, supor  os objetos no escuro e caminhar
na vida como quem caminha num quarto escuro,
não o quarto escuro que trazemos a vida toda dentro
de nós, mas o quarto escuro que cada dia é mais escuro,
e no lusco-fusco da vida apenas sussurrar-lhe eu te amo
final e triste como alguém de madrugada certifica-se
que há alguém do outro lado da linha e da vida:
quantos alôs dizemos vida afora como se a vida
fosse sempre dizer que se está presente, uma eterna
sala de aula que dela nunca escapamos e, aprisionados,
apenas repetimos o que a matéria por si só já provaria:
estamos aqui, de corpo e alma presente, até na morte,
quando estaremos mais presentes e como nunca
mais ausentes e, assim, a vida como sala de aula
e um infindável telefonema poderemos sussurrar
ao mundo que estamos aqui até a última chamada
e o telefone desligar.                                                              








(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)