Vai que uma amiga de infância – ou
quase isso –, sempre eu que retornava de
minhas férias escolares, perguntava-me, mal me via:
— Jádson, me conta sobre o mar de
Goiânia. Sei que é tão lindo!
Ela era um pouco mais velha do que
eu e ainda não tinha saído para estudar fora. Eu não sabia o que dizer e
inventava um mar para Goiânia. Ia à Biblioteca da Católica, consultava a “Enciclopédia
Mirador”, olhava cidades banhadas pelo mar e, na volta para casa, para minhas
férias escolares, já encontrava minha
amiga me esperando. Sempre, sempre gentil e educada.
Dias antes, ela estivera com mamãe e lhe perguntava:
— Tia, o Jádson chega quando?
Mamãe sempre me entregava: dia,
hora, minuto, segundo. Fazia limonada, torta de maçã, um monte de bolos
caseiros. Eu voltava cansado da viagem, muito cansado, pensando em dormir.
Viajar 980 kms, naquela época, mesmo eu sendo um garoto, um atleta, um
corredor, não era nada fácil. E minha amiga, em vestido de chita, aguardava-me
com a eterna pergunta:
— Me conta mais sobre o mar de
Goiânia.
E eu inventava as histórias que
lia em livros, descrevia paisagens com mar, dava-lhe uma impressão profunda de
movimento, muitos idiomas, mulheres vestidas com roupas impossíveis, homens
galantes desembarcando num porto de Goiânia e ia dormir.
Durante o resto das férias,
tentava me desviar do “mar de Goiânia”. Buscava outros assuntos, fugia de minha
amiga, refugiava-me em fazendas próximas, viajava para ver minha namorada que
morava na cidade de meus avós maternos e retornava já perto de voltar para
Goiânia, já com saudade de minha namorada, já escrevendo cartas a ela, cuja
resposta eu teria em Goiânia.
Eu não fazia muito em Goiânia:
estudava o dia inteiro, ia ao cinema aos domingos sozinho ou com alguma paquera
eventual, muito raramente ia a uma danceteria e respondia às cartas de minha
namorada. Vez ou outra, minha amiga me escrevia e, no P. S., o de sempre: “Qual
a cor do mar hoje aí?”
Era um mar cambiante, que assumia
as cores que eu imaginava.
Uma tarde, eu estava deitado,
lendo pela primeira vez “Cem anos de solidão” e, portanto, vivendo em Macondo,
quando bateram à porta de meu quarto. A voz de um amigo, irmão de minha amiga,
me chamando.
Abro a porta e me deparo com meu
amigo e minha amiga. Os olhos dela vermelhos de choro ou de raiva. Ela
profundamente calada, como só as mulheres sabem ficar, antes da tempestade. Meu
amigo me disse, desolado e tentando amenizar o que viria.
— Não pude fazer nada. Ela
insistiu tanto com mamãe para vir, que não teve jeito. Quando ela perguntou
sobre o mar para mim, não me contive e comecei a rir. “Que mar? Mar em
Goiânia? Girou?”
— Mas o Jádson me disse. Me deu
tantos detalhes, em tantas cartas.
Ainda tentei fechar a porta do
quarto, mas minha amiga arrumou uma força incrível, como a que dizem que só as
mães têm e empurrou a porta, já me dando uns tapas:
— Então aqui tem mar, né? Tem mar,
né?
Numa brecha, ganhei o corredor do
pensionato, fui para a casa de outro amigo e só retornei uma semana depois,
sabendo que ela já havia ido embora.
Nas minhas férias, ela me evitava
e senti o quanto não poder inventar mais o mar para Goiânia me deixava triste. Muito
triste.
Hoje, quando encontro com essa
velha amiga, pergunto:
— Você acreditava mesmo que
houvesse mar em Goiânia?
— Claro, você dizia, descrevia,
era um grande amigo.
— Mas você não estudava geografia,
não sabia que em Goiânia não tem mar?
— As professoras me diziam que
não, mas eu lhes mostrava suas cartas e dizia: “Está aqui, tudo descrito, o
Jádson que fez. Ele é meu amigo e não iria mentir para mim.”
Desde essa época, aprendi um
conselho fundamental: mentir, só na literatura. Uma sobrinha, quando me
surpreende “dando alguma desculpa” para algo que não quero fazer, logo me
repreende: “Tio, o senhor está mentindo. Isso dá inferno, viu?” Tento dizer que
não é mentira, mas uma forma de não magoar a pessoa do outro lado, que isso é
um pouco como fazer literatura.
— Quer dizer que todos os
escritores são assim mentirosos, tio?
— Nem todos, minha filha. Uns
mentem, outros inventam.
E me sento e venho escrever isto
aqui, que não é mentira.
Jádson Barros
Neves é autor do livro de contos “Consternação”, publicado pela Editora Casarão
do Verbo. Lançado em novembro de 2013, na Feira do Livro Porto Alegre, o livro
conseguiria, em 2014, a quarta colocação na Bienal do Livro de Brasília e,
ainda em 2014, “Consternação” sairia entre os 10 finalistas do prêmio Jabuti,
na categoria contos/crônicas. Dentre os vários prêmios já conquistados pelo
autor, cabe ressaltar o 2º lugar do Concurso Internacional de Contos Guimarães
Rosa, promovido pela Radio France Internationale, de Paris, em 2000 (Prêmio
Maison de l’Amérique Latine); vencedor do prêmio Cidade de Fortaleza/2003; vencedor
do prêmio Felippe D’Oliveira, em 2001; em 2008, foi vencedor do Prêmio Cidade
de Belo Horizonte, na categoria livro de contos e, em 2011, do Concurso de Contos
Ignacio de Loyola Brandão, já em 2012, foi um dos 30 autores nacionais a
receber uma Bolsa de Criação Literária FUNARTE/Fundação Biblioteca Nacional,
com um livro ainda inédito. Atualmente, o autor reescreve seu outro livro de
contos e trabalha num romance.
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