quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

A máquina das mãos por Euler Belém


Um livro para chamar de grande



Li, antes, o prosador. Tão complexo quanto Kafka e Beckett (Raymond Carver? Quem sabe). Minimalista, às vezes. A palavra instigante tem sido castigada pelos “críticos cientistas”, porque revela o leitor impressionista, o que sou. Portanto, como não estou entre os críticos cientistas, os anatomistas do texto, posso dizer que a prosa de Ronaldo Costa Fernandes é instigante. Por quê? Porque um texto puxa o outro. Queremos ver como o autor resolve o conto seguinte. Mas tal não ocorre tão-somente com o prosador. O poeta, que eu conhecia menos, ou nada, é surpreendente. Recomendo vivamente “A Máquina das Mãos” (Editora 7 Letras, 102 páginas).
Costa Fernandes é poeta moderno, só não é modernoso, e dialoga, de igual para igual, com a tradição, inclusive a filosófica. Não há o mínimo desleixo. Há rigor. Palavras devorando palavras certas nos lugares certos.
O que ele arranca da doença (câncer) de Jacques Derrida (o Jacques Dá ou Desce, segundo José Guilherme Merquior) é, deixado o que é triste de lado, até divertido, cômico. Poderíamos chamar o poema de “Aula de anatomia”, com um quê de grego e, mesmo (exageremos), surreal, mas o autor preferiu “Em torno a uma imagem de Derrida pouco antes de sua morte”.
Transcrevo o poema para mostrar a mestria cadenciada de Costa Fernandes: “Recuso a voz verde de Derrida,/os olhos de estanho,/a pele ausente que pode rasgar-se,/plumagem de pássaro último./O câncer está prestes a mudar sua pele/— esta, a plumagem de gesso envelhecido,/a pele de terno com que se veste o morto./Cada vez que respira,/a marreta do matadouro miúdo/ameaça o cérebro filósofo./Carrega consigo o pequeno cadáver/de fígado, rim ou pulmão/que morreu antes dele./Logo sairá do cinema da morte./Entramos numa grande sessão de cinema/que dura vinte, cinqüenta ou setenta/anos e, de súbito, em vez de as luzes/acenderem, tudo se apaga.” Pois é: Derrida somos nós. Hoje ou amanhã. A vida é a grande (curta, às vezes) sessão de cinema.
Nas lápides dos cemitérios deveria constar: “Amou [muito ou pouco, dependendo do sujeito] e odiou” [idem]. O homem ama e odeia às vezes na mesma proporção. Mas há os cultores da blasfêmia, talvez todos nós. Recomendo, pois, a leitura de “Tormenta dos caminhos”: “A blasfêmia se alimenta/de criadouro de ouvidos./O maldizer engorda em cativeiro,/até que se abra a gaiola/e o burburinho inche/seu papo amarelo de intriga.//Não há como arbitrar o limo./A língua tem lá suas escamas./Os cabelos das ondas/necessitam de cachos para espumar./As correntezas são outro/caminho de água/dentro da água.//Preciso de faca para escamar,/de secura para fugir do limo,/de imaginação para ser/um caminho entre caminhos”. Deixo os achados, múltiplos, para os leitores, mas como deixar de mencionar “os cabelos das ondas necessitam de cachos para espumar” ou “as correntezas são outro caminho de água dentro da água”?
Costa Fernandes homenageia, num poeta curto, “Samuel Rawet”, o escritor judeu que “assombrou” Brasília: “A angústia judia e imigrante de Rawet,/que vivia apenas em seu gueto de Sobradinho./Rawet morreu lendo, em sua cadeira de balanço,/e lá ficou três putrefatos dias./O gueto de Rawet era sua cadeira de balanço,/ o menor gueto do mundo”. A cadeira era mesmo seu gueto, mas havia outro, o interior, no qual Rawet certamente se livrava do exterior, o contato com os “muito” normais. Nós, os normais paranóicos.
É difícil, senão impossível, descobrir uma poema ruim neste livro de Costa Fernandes, o que prova, decerto, a seleção rigorosa de um poeta rigoroso, sua secura da elaboração não esmaece o vigor das sensações apuradas. A forma como usa as palavras para observar e descrever as coisas, a vida, o comportamento é um espetáculo à parte. Os poetas dizem aquilo que gostaríamos de dizer, mas não temos (as) palavras.


Euler Belém (Jornal Opção)

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