O jardineiro vem uma vez por semana. Poda as árvores pequenas, corta a grama, limpa a varanda, trata das árvores frutíferas, arranca as ervas daninhas, enfim, trata o jardim com a necessária atenção de profissional. Mas não tem mãos delicadas para outras artes como as flores. As rosas acontecem. Simplesmente, acontecem.
Nascem
não sei como, surgem uma manhã e lá ficam, depois desaparecem. Nunca mais
voltam a nascer. Não há adubo, corte ou trato que dê jeito. E se as
quaresmeiras, ipês ou buganvílias dão colorido, sopram seus ventos de folhas
roxas, amarelas e violetas, é mais porque a natureza persiste, não descansa,
ignora o homem e suas mãos toscas.
Nada
é precipitado no jardim. Torna incurioso o fantasma de Lídia, com suas queixas
descabidas e mortas.
E
mais importante: o jardim manda-me o recado de que é preciso resistir contra as
mãos inábeis dos homens. É preciso acreditar em algo. Ter idéias que é a
maneira de dar fruto, porque não dar fruto é uma ação contrária à natureza.
Às
vezes aborreço-me. Quero mandar o jardineiro embora. Acredito que seja luxo,
desperdício, que não o mereço e, nesses momentos, me surge dúvida maior, não é
mais o jardim que interessa, o jardim é subsidiário de outra emoção que também
considero exagerada e perdulária, a de que, assim como o jardim, não mereço
companheira, não mereço amigo, não mereço agrado dos alunos, que desperdiço a
vida, seco como folha morta, não posso me dar prazer ou luxo de ter jardim,
amor, amizade e outros sentimentos prazerosos, incompatíveis com o salário, o
modo de viver, a paixão e a casa com jardim.
Logo
olho para o jardineiro com outros olhos. Já não está ali o sujeito desajeitado
que não sabe cuidar das plantas e flores. Ali está na minha frente a
personificação do gasto que não posso cometer, do amor que não me permiti. O
jardim lá está, indiferente às angústias.
Queira
eu ou não, o jardim desorganiza-se, cria sua própria ordem e apenas surge
silencioso, recluso, sem insistência.
Meus pés não me merecem. Quando quis ser andarilho,
o médico cortou a pretensão. Mas tenho persistido, porque o caminhar para mim é
vital. Desconfiança de que o médico, assim como me condenou à imobilidade, me
condene agora a outro tipo de imobilidade. Desconfiança do diagnóstico: O
pensamento faz mal a você. Diagnóstico medonho. Mas como me impedir de pensar?
Quer que eu evite os pensamentos mais elaborados,
raciocínios delicados ou sofisticados que me levam à angústia, então há de
cortar o mal pela raiz e neste caso o mal é o pensamento intelectual e a raiz o
hábito de exercitá-lo.
Volto ao pé – que do pé passei à cabeça –, meus pés
são tortos, voltados para dentro, não manco, ninguém percebe o defeito. Só não
posso dar grandes caminhadas. Assim como não posso abusar do pensamento, o que
também me atrai. O primeiro me leva a dores musculares e até ósseas; o segundo
me provoca a angústia infernal, dói-me a alma, que não tem ossos, dói-me o
espírito que me abate e me deprime.
(O viúvo, Brasília, LGE, 20015)
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