sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Linguagem, poema

 


 






 

Eis que de súbito tudo se desfaz

e as maravilhas de cor e silêncio intumescido

regurgitaram a tempestade do futuro

inquieto e réptil movendo-se

em meio à indelicadeza dos sentidos.

O que era passivo imóvel e submisso objeto

se revelou a demoníaca imagem da queda

e o fascínio mortal dos espelhos,

a intemperança dos fios desalbergados,

a natureza humana dos perigos da fugitiva

floresta de navalhas e a vegetação rasteira

do dia tomado de ervas

cada qual com sua linguagem de futuro.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

terça-feira, 12 de novembro de 2024

As duas revoltas de José Quirino, crítica de Vera Lúcia de Oliveira sobre "O ano da revolta dos desvalidos".

 

                                    

                                                                    








            Em seu novo romance, Ronaldo Costa Fernandes aposta na força poética das palavras. Faz do épico/lírico O ano da revolta dos desvalidos (RJ: 7 Letras, 2024) obra cuja força reside na escolha do léxico, no fino trabalho de ourivesaria do campo semântico. Cada vocábulo escolhido com precisão segue a lição de Flaubert da “palavra certa no lugar certo”. Esse é o primeiro aspecto que chama a atenção do leitor. É um desdobramento da sua vasta e premiada poesia, densa e ao mesmo tempo delicada e refinada. Originalíssima.

            Dando continuidade à saga dos acontecimentos históricos do seu estado natal, o Maranhão, Ronaldo que, com igual maestria, já transformara em ficção a presença do padre Vieira em Vieira na Ilha do Maranhão (2019) e os episódios da revolta da Balaiada (2021), nesse romance sintético, com capítulos curtos, conta a história da revolta liderada por Manuel Becker, conhecido popularmente como “Bequimão”, contra as medidas do governo português, o estanco, que prejudicava os produtores locais, em 1685. E, paralelo a isso, o comovente drama familiar de José Quirino, personagem riquíssimo em aspectos humanos e psicológicos.

            O romance se desenvolve com flashbacks revelando o passado desse homem desterrado, sem pertencimento à ilha de São Luís, onde há muito  vive. Chegou a ser um religioso em Portugal, sua pátria (o que lhe dá verossimilhança quanto à sua cultura e pensamento intelectual). Para se definir, utiliza a metáfora da água, tanto do mar quanto do rio Coti, que o cerca: “Fico pensando quantos rios me banham” (p. 71). E para descrever a mulher Teodora:

Teodora era um rio violento, desses que têm cachoeiras e quedas d’água. Suas águas eu não poderia represar. Tinha consciência de que lidava com um rio tumultuoso e indômito. (p. 72).

            E mais outros rios:

Ainda outros rios me habitam: o rio civil e colono, o rio comerciante e de vereança, o rio das ruas. O que são as ruas senão rios secos feitos de pedra, areia e barro? Que são minhas pernas senão um remo que me leva a um canto e outro da cidade? Que são as casas dos colonos, as mais aristocráticas, senão galeões ancorados no grande porto da cidade? A primeira grande multidão não vi em Lisboa, mas aqui mesmo, mais de trezentas pessoas na praça maior, em frente da câmara, do palácio e da igreja dos roupetas. Trezentos homens armados com espada, pau e pedra, vociferando contra os jesuítas e a governança. Percebi que ali estava não mais os rios afluentes e nervosos, pequenos e retorcidos das ruas da cidade, mas o império oceano da fúria. (p. 72).

            Nessas belíssimas passagens em que a exploração do campo semântico da água atinge múltiplas significações, vemos o compromisso do autor com o fazer poético. O resultado desse garimpo é a riqueza do texto, elevando-o ao mais alto patamar literário.

            Quirino, em sua fala reflexiva e sensível, merece destaque desde as primeiras páginas quando fala da filha única, a bela Maria, dolorosamente chamada de “sombra”:

Minha filha é apenas uma sombra de gente, que se mexe, se alimenta, defeca, urina, urra pelas noites de lua como uma cadela, mas não tem consciência de que vive. Talvez eu devesse dizer que ela é uma sombra que tem consciência de que não passa de uma sombra. Ou ainda dizer que ela tem consciência – porque os sentimentos também pensam, os sentimentos nos fazem pensar, porque o gozo e a dor sobem até a cabeça e temos consciência da dor e do gozo – e bem dizia que ela tem consciência de que é um ser vivo, um ser destroçado, imperfeito, nulo, inservível para a vida da cidade, a vida dos comerciantes, dos barqueiros, dos padres e das autoridades. Mas ela sabe que é minha filha e que é diferente das outras mulheres. (p. 6).

            O cerne da questão do romance está na vida frustrada desse homem, marido da mulher ausente e pai da filha duplamente ausente que muito o fazem sofrer e que, “como as marés”, um dia encheram sua vida para logo depois a esvaziarem. E é no vazio da sua vida seca, murcha e solitária de pai cuidadoso que vê a filha infantilizada, “idiota”, cair de amores pelo também adolescente “idiota” Abelardo:

O rapaz era tão idiota como a filha, percebeu José Quirino. Ele não ia deixar que dois idiotas se casassem, fossem morar sozinhos e tivessem filhos idiotas, prolongando a permanência de idiotas na ilha. (p. 22).

            O nome Abelardo nos remete ao sábio e filósofo francês da Idade Média, Abelardo, apaixonado pela discípula Heloísa, os quais viveram um romance trágico – pois contrário à vontade dos pais da jovem; remete-nos ainda com mais propriedade ao amor puro dos jovens Paulo e Virgínia, personagens do romance homônimo de Bernardin de Saint-Pierre, clássico da literatura francesa, de 1787. Livro encantador inspirado nas ideias de Rousseau, que se tornou mítico pelo tema da volta à natureza como refúgio dos amantes.

            Há, portanto, dois movimentos na narrativa de Ronaldo: um, em direção ao mundo exterior à casa de José Quirino, que mostra o conflito entre o governo e os rebelados com a prisão do herói Bequimão; e outro, ao interior da sua casa e, mais ainda, ao interior dele mesmo, um anti-herói. Este, subjetivo e sutil, transformando o acontecimento sugerido no título em quase um pano de fundo, painel do tempo em que a ação se desenrola.

            Com o discurso ora em terceira ora em primeira pessoa, a narrativa aproxima e distancia Quirino alternando-o como narrador e personagem:

O comércio da leitura com os padres me faz um bem danado, mas ao mesmo tempo me frustra porque me retira de minhas ambas as casas, de taipa e alvenaria, e me coloca no vácuo. Sou assim vizinho do etéreo, do nada, do impermanente e do risível – alguns colonos riem de mim e pensam que tenho miolo mole e que a doença de Maria ela herdou de mim, embora não leia e desconheça quem seja Sêneca. (p. 40).

 

Em algum momento, José Quirino andou pelas terras do Mearim e também teve a alma doce e industriosa como a de Manuel Bequimão. (...) Naquele tempo era um homem só, nem conhecia a sua futura esposa. (p. 43).

            Quirino vive solitário na casa enorme, pois a criada dona Raimunda, no seu canto, não é lá muito certa das ideias. Chegou a pisar no mundo da desrazão:

Houve uma época em que pensei que havia perdido dona Raimunda. Ela variava, não sabia que era dona Raimunda e me perguntou o que fazia em casa. Desconheceu a razão e Maria, quis desalimentar-se do mundo. Ficou muda, e quando falava, dizia que a trouxeram num navio negreiro, que seus pais eram negros da África, e podia-se bem ver a pele leitosa de dona Raimunda enlouquecer os desvios da razão. (p. 69).

            Mas dona Raimunda também tem voz: depois de narrar o seu passado de sofrimento, diz:

Apareceu por essa época o senhor José Quirino que tinha a filha avariada e queria uma senhora que cuidasse da menina. Afeiçoei-me aos Quirinos, por esse tempo ainda dona Teodora não havia abandonado a morada. (p. 86).

            Nesse tempo da chegada dos negros africanos escravizados para a vida miserável que os aguardava, tudo era pesadelo na história do Brasil-Colônia onde vivia essa gente degredada e “sem valor”. Pesadelo que se torna também metáfora do desaparecimento da filha de Quirino, o que nele reafirma e institui mais do que nunca a função do pai. Pai preocupado, amoroso, diligente, que abdica da guerra na cidade sitiada em favor da guerra particular, na busca mítica da filha. É, portanto, de perda, culpa e reparação que trata a vida do atormentado e bom Quirino; da indiferença da natureza selvagem ante um ser destroçado, já sem “o ímpeto das águas turbulentas” de outros tempos; e da força avassaladora e impiedosa da floresta que atrai e engole os que nela se aventuram, tornando-se lendas.

            Assim, José Quirino busca nas profundezas da floresta a filha amada e nas profundezas da sua alma o sentido da paternidade. Uma longa viagem do si ao si mesmo, andando em círculos.

            E Ronaldo Costa Fernandes busca a força e a poesia nas profundezas das palavras nessa história tocante, humana, muito humana...

           

 

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Kamikaze, poema

 







 

 

É preciso que a memória amoleça

e, no verão abafado das imaginações,

o poema aconteça.

Retira-se o pó das reticências,

que é costume parar à espera

do trânsito das ideias

e ao sinal amarelo dos zelos.

Depois invoco não a infância,

que é um poço

de conversas desencontradas,

na varanda do tempo,

mas o haraquiri do presente,

por sua vez cortante e invernal,

como um kamikaze

busca o seu pouso

no alvo que é o seu fim.

 

 

 

 

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

O sem-fim da terra natal, poema

 


 

 


 

 

 

As inconfidências

percorrem as ruas do medo,

o largo do desterro,

a ladeira dos afogados,

os sobrados

da fanfarronice e endlessness,

as tripas da discórdia,

o boqueirão das vontades reprimidas,

o beco das dores íntimas,

a morbidez encurralada

pelo vozerio das cantarias.

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

O ano da revolta dos desvalidos 1, romance

      


                        





                                         

 53.



            O pai de Abelardo olhava para as mãos e não entendia como elas deixaram de funcionar, não dobrava mais os dedos, doía ao tocar qualquer superfície e, caso não as olhasse, pensava que não existiam mais ao fim do braço. Talvez algum mosquito severo tivesse lhe transmitido uma moléstia qualquer, elas inchavam e, o que era antes uma máquina de fazer as coisas, haviam se transformado num estorvo. O barbeiro não sabia explicar nenhuma enfermidade tão súbita que pudesse lhe ocasionar tanto dano.

            Sem as mãos em funcionamento, a fábrica de latas, flandres, canecas, penicos e outros objetos iria soçobrar e ele não teria como alimentar a família. Enfaixou as mãos com unguento a fim de que pudessem desinchar; ele acreditava que o inchaço causava a dor e a imobilidade; se voltassem a ser magras talvez recuperasse os movimentos e elas pudessem lhe servir de máquina para a fábrica.

            Não supunha que as coisas estavam tão reviradas depois de seu retorno. Teve que ir até a câmara afirmar que não fugira da devassa e que não comparecera ao depoimento porque estava perdido na mata. Declarou que, sim, ficara muito abalado de finanças e temperamento quando soube que o estanco lhe proibiria de fabricar seus objetos de lata, e que não sabia fazer outra coisa na vida, e que a vinda de peças de latoaria do reino iria causar a fome em sua família. E que ficava contente de o rei ter suspendido o fatídico e famigerado estanco. Mas que não se envolveu em rebeldia, não participou da marcha revoltosa que o Bequimão empreendera, e que tudo o que queria era voltar a ter saúde e mãos para colocar em dia sua fábrica.

            Um homem que desconhece a floresta não deve afrontá-la e ele afrontou a mata cerrada quando os dois, ele e o pai da menina Maria, se embrenharam no mato. Estava seguro de que todo o mal que lhe advinha fora porque manuseara frutos proibidos, folhas perversas e outros elementos pérfidos da floresta.

            Andou desalentado pelas ruas, visitando um e outro padre a fim de ver se as rezas lhe traziam de volta as mãos. Havia tentado o unguento dos indígenas e pajés, os remédios da medicina, quem sabe se os santos se compadeciam de sua dor. Como nada dessa panaceia lhe resultava em cura, procurou os feitiços de Úrsula. A mulher lhe fez prometer que se o curasse pelo resto da vida ele forneceria a ela todos os objetos de latoaria que produzisse com sua mão benfazeja. E mais ainda, que não contasse nada a ninguém, nem mesmo a sua mulher, a mãe de Abelardo, que ela temia ser presa e mandada para o Gurupá.

            Mas deu em nada as mandingas de Úrsula, seus caracóis, suas mezinhas, sua bacia e seus sapos e matéria fedorenta. As mãos continuavam inchadas, pesadas e paralisadas. Dona Raimunda fez um preparado com alcatrão, cravos e sebo de porco, e aos poucos a mão desinchou, mas continuou com os dedos inservíveis. Ele pediu a Nossa Senhora da Conceição que lhe trouxesse a saúde e lhe prometeu erguer uma pequena capela, modesta, mas feita com sua própria mão curada, no alto de um monte para o lado de um descampado que ia dar num pântano.

           

 

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

O ano da revolta dos desvalidos, crítica de Adelto Gonçalves

  






  I

    Depois de publicar Vieira no Maranhão (Rio de Janeiro, 7Letras, 2019) e Balaiada (Rio de Janeiro, 7Letras, 2021), ambos ambientados na época colonial no Maranhão, Ronaldo Costa Fernandes volta a exercitar o gênero romance histórico e retoma São Luís como cenário em O ano da revolta dos desvalidos (Rio de Janeiro, 7Letras, 2024), em que traça uma história de amor paternal por uma filha, em meio aos tempos turbulentos da revolta liderada por Manuel Bequimão contra o jugo português em 1685.

    Como se sabe, em sua primeira experiência no gênero, Fernandes criou, com absoluto êxito, um gênero híbrido de crônica e romance, misturando história à ficção. Sem pretender o foro de biografia do padre António Vieira (1608-1697), esta obra procurou reconstituir a passagem de oito anos, de 1653 a 1661, do missionário pelo Maranhão, onde sua voz ecoou por várias vezes no púlpito das igrejas para condenar o regime de escravidão que os poderosos do local impunham aos indígenas. Nela, o autor tratou também de recuperar os embates que o religioso teve de enfrentar contra a elite local, os chamados homens-bons, ou seja, os proprietários de terras, que insistiam em fazer do Estado uma extensão de suas casas senhoriais, tal como ainda o fazem hoje muitos de seus pósteros.

    Já em Balaiada, seu oitavo romance, procurou evocar uma revolta histórica por melhores condições de vida que envolveu escravos e outros segmentos oprimidos e eclodiu na província do Maranhão, entre os anos de 1838 e 1841, tendo sido um movimento eminentemente popular contra os grandes proprietários agrários da região. Recebeu esse nome devido ao apelido de uma das principais lideranças do movimento, Manoel Francisco dos Anjos Ferreira, o Balaio, que tinha esse apelido porque fazia cestos com as mãos.

    Desta vez, com a mesma preocupação de resgatar a linguagem própria da época e fazer a reconstrução daquele tempo, o autor procura envolver o leitor numa trama de ficção com muitos elementos da realidade e da formação do povo maranhense. O principal personagem, o comerciante José Quirino é um dos revolucionários que seguiam Manuel Beckman (1630-1685), o Bequimão, filho de pai alemão e mãe portuguesa, que viera de Portugal para aventurar-se no Maranhão, tornando-se grande senhor de engenho, e que haveria de entrar em divergências com grandes proprietários locais e com os religiosos da Companhia de Jesus a respeito da escravização dos indígenas.

    Quirino, porém, não é um colono só preocupado com vendas e números. Em Aveiro, onde nascera e se criara, cultivara algumas leituras e, em São Luís, tivera acesso à biblioteca dos jesuítas e às “palavras de Vieira sobre Sêneca e Klépero”, embora se mantivesse em silêncio para “não passar por esnobe para uns, soberbo para outros, desmiolado para muitos, perigoso para a guarda pretoriana do governador”. Sabe-se disso porque o romance é intercalado por anotações que teriam sido deixadas por Quirino.

II

    A obra, porém, enfoca mais a luta de Quirino, que fora abandonado por Teodora, sua mulher, para dar à filha Maria um futuro promissor, já que ela seria moça pura e ingênua e que, hoje, provavelmente, haveria de ser rotulada como autista. Bela, “uma criança em corpo de mulher”, Maria se apaixona por Abelardo, filho de um comerciante como Quirino, mas os pais, em comum acordo, negam-se a autorizar o matrimônio, já que ambos teriam um desenvolvimento mental incompleto ou retardado, ou seja, seriam desvalidos, o termo mais usual à época.  Abelardo, filho de um latoeiro, segundo o próprio pai, não servia para nada, “apenas para caminhar pela cidade com as canecas, candeeiros e objetos de lata e flandres presos num pedaço de cabo de vassoura”, a vender bugigangas.

    Apaixonados e revoltados com a intransigência dos pais, Maria e Abelardo fugiriam para as matas e nunca mais seriam encontrados. E a culpa por não ter permitido que os dois se casassem acaba por transformar a vida de Quirino, que, repudiado pela mulher que o chamava de “inútil”, viria a se afundar num estado de depressão que o levaria a embarcar, quatro anos depois, numa nau para o reino, onde tornar-se-ia padre inaciano.

    Ficaria para trás uma vivência atribulada, em que cumpria votos de pobreza e andava pelas ruas de São Luís “vestido num camisolão, de barba grande e um cajado como um apóstolo dos tempos de milagre”. Retornaria ao mesmo convento em Lisboa onde fora seminarista e de onde partira para a colônia, sempre vivendo recluso e com medo de ser assolado pela “maldição de insanidade que acreditava ter perseguido sua família”.

    Como já se pode ver por aqui, trata-se de uma narrativa rica e envolvente em que o autor, com rara habilidade estilística, conduz o leitor por uma época que prenunciava a separação da colônia americana, já que tem como pano de fundo uma revolta liderada por grandes proprietários de terra contra o estanco, o monopólio promovido pela Companhia Geral de Comércio do Maranhão, ou seja, “só se compra o que vem de Portugal e só se vende para a companhia”.

    Uma rebelião que seria debelada com a chegada de Gomes Freire de Andrade (1636-1702), nomeado capitão-general e governador da capitania, com a condenação de Bequimão à morte por enforcamento. Embora a História considere essa uma revolta popular, fica claro que o que estava por trás, como na maioria das vezes, era o interesse das classes dominantes. E os pobres e os remediados, mais uma vez, teriam sido usados como massa de manobra.

 Foto: Associação Nacional de Escritores (ANE)

domingo, 6 de outubro de 2024

O instigante mosaico de "Vale das ameixas", de Hugo Almeida

 











Conheço a produção literária de Hugo Almeida desde seus primeiros livros de contos nos anos 1970/80 até o agora romance Vale das Ameixas (Editora Sinete, São Paulo, 2024). Durante a trajetória de 15 livros Hugo tem sido fiel a si mesmo. Jornalista, primeiro em Belo Horizonte, mais tarde e definitivamente em São Paulo, doutor em literatura brasileira pela USP, ele sempre perseguiu a experimentação, tendo por influência ou confluência a presença estética de Osman Lins (1924-1978). Vale citar seus escritos, conferências e organização de livros sobre o escritor pernambucano porque o mestre de Avalovara está presente neste romance sobre o qual agora escrevo, principalmente na intertextualidade de A rainha dos cárceres da Grécia com o labirinto previdenciário e sua personagem Julia Enone.

Em 1988, Hugo Almeida ganhou o importante e prestigiado prêmio da Bienal Nestlé com o romance Mil corações solitários. Agora retorna ao gênero com um romance vigoroso. Vale das ameixas é composto em forma de mosaicos e várias vozes. O personagem central é Harley ou Timo, um polonês exilado no Brasil, que ganhou a vida como professor. Aposentado e envelhecido, o personagem revisita seus amores, encontros e desencontros, a vida dele amorosa com as mulheres de sua vida (Núbia, Léa, Biela, Laura..) e a vida das mulheres, cada qual com seus destinos sem a presença dele, desde uma atriz, uma guerrilheira política, uma bailarina e várias outras.

Como o livro é um composto de recortes, o leitor terá de montar a linearidade que o romance não expõe à leitura. Com muitas menções a figuras artísticas polonesas como Chopin, Grotowski, Wajda, Krajcberg, Polanski, Gombrowicz, Ziembinski, o romance cresce em densidade com essas lembranças e historietas de grandes escritores, músicos, cineastas, artistas plásticos etc. que povoam o livro.



Neste tipo de narrativa errática (não há aqui neste adjetivo nenhuma conotação negativa, pelo contrário), fragmentária, o mais comum – como aqui ocorre – é não haver uma linearidade que conduza a uma tensão do tipo apresentação, problema, clímax, anticlímax. São essas partes do mosaico que vão compondo o painel final da vida de Timo, suas mulheres, seus filhos (um ou dois?), suas dores, seus amores, suas alegrias. O interesse é a composição da grande tapeçaria literária e não um suspense ou uma história com princípio, meio e fim. Neste sentido, como no Jogo da Amarelinha, de Cortázar, o romance de Hugo Almeida pode ser lido de trás para frente, de frente para trás, ou começar de qualquer fragmento. Este é um dos virtuosismos de Hugo Almeida em seu Vale das ameixas.

O personagem principal é um sujeito solitário, vivendo de recordações de amores fugidios de outras épocas, algumas foram suas alunas e ele exerceu sua influência intelectual. É um exilado do nazismo, com lembranças da sua Polônia natal. Não é um primor de virtude, embora quase todas as mulheres de sua vida o tenham em boa conta (a psicóloga Amanda é exceção). Não poderia deixar de citar, porque a mim me toca muito particularmente, a personagem d. Benedita, que apareceu primeiramente num romance meu, O viúvo, e que Hugo a fez morar com o polonês, dando conta ao leitor que eu ao ir para a Venezuela a deixara com Harley. É uma personagem pela qual tenho muito carinho e Hugo a reconstrói de maneira admirável, dando outros toques que a tornaram mais humana. Aí está, além da beleza da amizade que nos une há quase cinquenta anos, a experiência da intertextualidade como muito bem aponta o autor.

Nessa colagem densa, nesse bricabraque narrativo, Hugo Almeida constrói com seu Vale das ameixas, depois de uma larga e profícua trajetória, um dos romances mais instigantes dos nossos dias. É o ápice de uma carreira construída com zelo, afinco e perseverança.







quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Formigável, poema


 

 






 

 

 

Formiga em mim

uma necessidade de saúva.

Corto as folhas da relva

dos meus poemas.

A cabeça grande das ideais tolas

e o sacrifício de carregar

o dobro do meu peso.

A fila indiana

dos meus problemas

cria em mim

a doce ilusão de viver tranquilo.

Em meu formigueiro

há o desânimo animal da espécie:

o amargo encargo da realidade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

domingo, 15 de setembro de 2024

Um homem é muito pouco 11



Resultado de imagem para radu belcin



O último caso lhe deixou rombo formidável e uma bala encravada entre os pulmões que os médicos não quiseram retirar. Menuhim sempre pensava na bala quando abria as portas. A bala dentro do peito, entre os pulmões, esfriava e dor úmida, arfante, gelada, vinha de dentro dele como presságio ou mau agouro. Quando a bala se fazia sentir, ele recusava o cliente sem dar explicações e as portas se fechavam para quem ele sempre as abriu.

Mateus e Clemente viram a primeira porta se abrir. Os dois entraram, a porta de ferro fechou-se atrás deles e a porta da frente não se moveu.

Não se moveu porque o velho armênio passou mal, não alcançou o botão que abria a segunda porta de ferro. A intenção de Menuhim era destrancar a segunda porta, agora não apenas por confiar na visita, mas porque sabia que estava prestes a sofrer ataque do coração ou outro de igual potência e queria que a porta se descerrasse não para atender o cliente, mas para que fosse salvo pelos visitantes.

Mas antes que alcançasse o botão, o relojoeiro dobrou as pernas, o olho fixo e arregalado na tela da televisão que mostrava os dois, Clemente e Mateus, ali postos entre ferros de porta e ele, Menuhim, à beira da morte. Quanto a Clemente e Mateus os dois não se moviam, olhavam-se, batiam na porta como se a porta fosse porta de se abrir no trinco e não de forma eletrônica. As batidas na porta não chegavam ao ouvido de Menuhim, mesmo que os ouvidos de Menuhim estivessem prontos para ouvir, mesmo que os ouvidos pudessem ouvir o que não se podia ouvir porque os murros na porta de ferro não ultrapassam a mesma porta de ferro.

Os dois, Clemente e Mateus, por sua parte, desconheciam o que acontecia com o velho armênio que estava estirado e desmaiado no chão. Acreditavam que o relojoeiro não queria abrir e os deixava ali naquele purgatório de ferro.

A luz ficava mais amarela, os tons marrons sobressaíam. Nenhum dos dois tinha claustrofobia, embora Clemente fosse dado a imaginar a cama do camarote como ataúde sempre que ali deitava e o sono não vinha. Os murros de Clemente e Mateus ressoavam apenas dentro da pequena cela. Não gritavam, os gritos doíam-lhe nos ouvidos.

     Menuhim perdia o fôlego, também ia ficando sem a vista das coisas, os mostruários, as ferramentas e as joias todas rodando na sua cabeça. Vinha-lhe um ladrão que chegava perto dele e dizia: Vim buscar o roubo final. As peças estão todas aí, leve-as todas, respondia Menuhim. Mas o ladrão que estava diante do joalheiro não era ladrão de joias. O ladrão que estava diante do velho viera buscar outro objeto do armênio que não esperava tão cedo encontrar a tal porta e muito menos ser assaltado por um bandido de outra espécie que não queria coisas materiais, ou melhor, a única matéria que satisfazia o ladrão era a matéria corrompida do corpo de Menuhim.
       O porteiro tentou arrombar a porta principal, a que dava para o corredor, mas logo percebeu que não conseguiria, mesmo com instrumentos de arrombamento. Se o porteiro tivesse conseguido teria ruído por terra toda a segurança de anos. Clemente e Mateus perceberam que havia movimentação no corredor e agora gritavam para quem estava no corredor e não mais para o joalheiro. Que diabo Menuhim havia feito com eles, que brincadeira era aquela de deixá-los prisioneiros. Menuhim era homem sem humor. Eles não acreditavam que aquela prisão entre portas de ferro fosse mera brincadeira do velho armênio. Era essa certeza, a falta de humor, mesmo que fosse humor rude, inexperto, camponês como o espírito de Menuhim que nunca deixou a velha aldeia onde nascera e fora criado antes de vir para o Brasil, mesmo que fosse esse tipo de humor, o velho armênio era incapaz de cometer. Logo o que viviam era o inferno. Do purgatório ao inferno. Clemente olhou para o companheiro que havia mostrado a vida inteira coragem inteiriça e agora só via um sujeito vítima do próprio horror.


(Um homem é muio pouco. São Paulo: Nankin, 2010)


quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Aprendizagem do destino, poema

 


 

 

 

 

Maria Izquierdo

 

Desaprendi a aprender.

Meus olhos não gostam

de olhar para trás

como num palíndromo.

O futuro são artes

da imaginação

que supõe o que será escrito.

Inquieta-me ter

um nariz entre os olhos:

para ver adiante

tenho que cheirar o destino.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Um homem é muito pouco 30

anunciação por Otto Dix (1891-1969, Germany) | | WahooArt.com

            
A guerra piorou, Vicentino teve de deixar Luanda às pressas. Antes Altiva disse que ia com ele para o Rio de Janeiro. Vicentino foi morar perto da Cruz Vermelha e no apartamento não havia como enterrar ninguém porque a cova era rasa. Podia ladrilhar o chão que não havia possibilidade de enterrar o passado no chão do apartamento. Vicentino pensou que estava livre de Altiva, mas ela amaldiçoou e disse que o esprito dela ia encarnar em outra negra brasileira ou não.

            A princípio Vicentino foi trabalhar com mármore. Seu pai tinha negócio de marmoraria em Luanda e vendia muito para cemitério e piso de parede de banheiro dos colonos ricos brancos de Luanda. O sono perfurado de maldição de Altiva voltou aos poucos, mas ele não deixava de lembrar o terremoto da voz de Altiva, no baixo da sala, blasfemando e augurando desgraças brasileiras. Vicentino depois arranjou serviço na morgue e não era serviço de destripar defunto que não era médico nem tinha curso de coisa parecida. O trabalho era de escritório. Certa vez Vicentino baixou até o necrotério. Havia uma negra morta que lhe falou em linguagem de morto e com o mesmo tom de vulcão azulejado de Altiva. Ele se assustou e respondeu pra morta.

            Olha, eu gostava muito de Altiva, se pudesse eu fazia qual o príncipe português que mandou desenterrar a amada que uns crápulas da corte assassinaram para que ele não casasse com plebeia e colocou a gaja no trono para que reinasse como rainha morta ou morta rainha.

            Se pudesse desenterrava a negra Altiva de Castro e a punha na sala, vestida de roupa de mulher branca e não de roupa de mucama negra e a família dele viria e ela haveria de estar na sala, morta e vestida, sem voz vulcânica azulejada.

            Depois Vicentino trabalhou num restaurante como garçom. O que o povo não sabia é que Vicentino trabalhava em ofícios menores, mas tinha com ele boa quantia para montar negócio. Vicentino só esperava conhecer melhor o Rio de Janeiro e a maneira brasileira. Não havia guerra, os negros não eram perseguidos nem colonizados, não havia guerrilha, nem ódio. É muito complicado ter que viver com o coração furado. Vicentino começou a frequentar Copacabana para ver como funcionavam os bares e restaurantes. Numa noite, no calçadão, num bar cheio de turistas, Vicentino sentava sua tristeza angolana debaixo de um inútil guarda-sol quando se aproximou Ariana em forma de prostituta e, como ela disse, com voz de vulcão azulejado e a pele tão negra quanto a mais negra solidão.



(do romance Um homem é muito pouco. São Palo: Nankin, 2010)

domingo, 8 de setembro de 2024

Imaginações violadas, vídeo-poema RCF





Imaginações violadas



O padeiro exerce o fermento
na alquimia do forno
que tudo assa: trigo e cotidiano.


Há fila de espantos
para comprar o alimento
que já está em nós:
rotina de existir todas as manhãs.

Há algo de bíblico
em meu ateísmo amanteigado
e no confuso café com leite
em que as matérias filosóficas
se reduziram, em minha mesa, a migalhas.

A imaginação é o grande padeiro,
de um lado me fermenta,
de outro me coloca em seu forno:
a combustão de existir.


(do livro Eterno Passageiro, 2004)


sábado, 7 de setembro de 2024

O amor (Pas-de-deux)

 


 


 

 

 

 

Quis o amor conhecer

de que fonte provinha.

O amor é ele mesmo,

a fruta de sua vinha.

É espontâneo e rude,

a água e seu açude.

Amor é mil revoluções por minuto,

fazer da boca do outro

um tanque de oxigênio

e submergir ao relógio parado.