Esse homem que se passa por mim,
veste meu terno, dirige meu carroe assina documentos com meu nome,
desconheço quem seja.
Esse homem que se apresenta com meu
nome,
se reveste de comiseração para
chamar meu obséquio,é uma fraude dos nervos e uma viagem sem retorno,
aquela que não vivi e sempre em mim
permaneceu como bicho que se incrusta
na pele ou a simbiose submarina
de rocha e sua concha, de arrecife e rêmora,
coisas que se agarram a outras para poderem viver
como um só elemento.
Esse homem que vai ao meu trabalho,
cumprimenta meus colegas e senta-se
à minha mesa,rouba meu tempo sem remorsos ou renúncia,
devorado que está pela voracidade das horas,
inconformado com o serrote do tempo
e o horror de existir entre quatro paredes,
ser pago para escalar o martírio
dos minutos que são degraus
que não se sabe se subimos ou descemos,
quando o expediente finda
como animal que para existir
deve alimentar-se do próprio corpo
e, logo, não haverá corpo,
pois o corpo morto não será alimento do corpo,
mas pasto para outros minúsculos corpos.
Esse homem que entra no
supermercado,
graceja numa loja de eletrônicos,desconhece o perímetro dos acidentes,
a fratura dos erros, o desvio que toda reta
induz, a amargura da servidão da vida
que se impõe necessária e impeditiva,
pois não há como evitar ser humano,
o que é difícil e inexato como a pontaria
dos míopes ou respirar dentro de uma placenta
que, rompida, nos coloca na rota perigosa da vida.
(Memória dos Porcos, Rio: 7Letras, 2012)
(foto: rodney smith)
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