Clemente foi com a mulher e Aninha visitar a sogra pela primeira vez. A
mulher do dr. Macedo, mãe de Yolanda e avó de Aninha, não reconhecia nem a
filha nem a neta. A mansão do dr. Macedo era descomunal. Clemente foi ao
banheiro e quando voltou não encontrou mais Yolanda. Ela havia ido para outro
cômodo com a mãe. D. Severa (Clemente nunca soube o nome da mãe de Yolanda, ela
só chamava a mãe de dona Severa) era servida por enfermeira.
A primeira visão da casa e da enfermeira fez Clemente se lembrar do
internato em Bremen. Ele estaria de volta ao sanatório de Bremen, onde um
médico alemão lhe fazia perguntas em espanhol. Talvez fosse melhor que o médico
mesmo falasse em alemão. Ele tinha conhecimentos da língua universal dos
marinheiros e que se fala em portos e que nela consta algumas frases e palavras
em alemão. O espanhol do médico era péssimo e Clemente não conseguia entender o
homem. E como o homem não se fazia entender, dava como apatia o silêncio
perturbado de Clemente. O brasileiro só queria que o deixassem livre e o
devolvessem ao navio de onde o tiraram. Amarraram Clemente numa maca, levaram
para a câmara de raios X. Tiraram algumas chapas da cabeça e Clemente se
perguntava que medicina maluca era aquela que tirava chapas de raios X da
cabeça dele. O que queriam encontrar ali? Um tumor? O tumor de Clemente era
mais denso e pouco visível numa chapa de raios X. O tumor de Clemente era a
própria vida que andava intumescida.
O barco estava intumescido, as ruas estavam intumescidas, as pessoas
andavam intumescidas pelo supermercado, pelas ruas, pelos cinemas, pelos
edifícios de governo. Clemente acreditava que não estava nele a intumescência
das coisas e, sim, nas coisas em si. Elas mesmas é que eram intumescentes. E o
sanatório fazia parte daquela intumescência em que Clemente estava vivendo.
Agora andando pelos corredores da mansão do velho e falecido dr. Macedo,
dono da fábrica de sabão que ele tanto comprara e usara, voltava-lhe a
intumescência das coisas que viveu em Bremen. Ele mal podia andar e quando
andava tinha que se segurar nas paredes como se segurava nas paredes quando sua
embarcação pegava pela frente tempestade terrível e furiosa. Clemente tinha
medo do fogo e da água. Clemente não sabia de qual elemento da natureza tinha
mais medo. Qualquer um dos dois podia fazer arder ou afogar uma biblioteca.
Podia queimar um homem, transformá-lo num pedaço horroroso de carvão ou podia
inchá-lo de tanta água nos pulmões.
Clemente vira afogados monstruosos, cujas partes do corpo se largavam, se
decompunham, se soltavam dos ossos como carne cozida passada do ponto. A velha
senhora d. Severa, mãe de Yolanda, também era uma mulher intumescente. Ele não
tinha nada o que conversar com uma mulher intumescente, com uma afogada, uma
mulher que largava as partes da memória por onde andava.
(Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)
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