Evangelho pelo avesso
São Clemente de Alexandria, citando Heráclito, escreve: “O porco tira seu prazer da lama e do esterco”. Com raras exceções, a imagem do porco, nas diversas mitografias, encerra um conteúdo negativo associado às ideias de devoração, luxúria, ignorância, egoísmo, enfim, toda uma simbologia disfórica que tende a representar o lado obscuro, perverso e abjeto das coisas, conforme as informações preciosas do Dicionário de símbolos, de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant.
Creio que não me engano, neste breve comentário crítico, se vincular semanticamente o título Memória dos porcos (7 Letras, 2012), do mais recente livro de poemas de Ronaldo Costa Fernandes, a esse arrazoado de noções e conceitos, símbolos e temas, que lastreiam seu discurso poético.
Há, na sua poesia, uma tensão permanente entre o eu lírico - ensimesmado, irônico, reflexivo -, e a realidade, em sua formulação contraditória, ameaçadora, injusta e violenta. Não se tem, contudo, uma voz meramente de denúncia que instrumentalize a palavra poética a serviço das “boas causas” e das “boas intenções”, precisamente porque o contexto, tecido pela operação textual, transmite um “saber”, ou melhor, uma imagem, que ultrapassa os limites desse ou daquele contexto histórico particular, embora não se devam excluir os apelos sintomáticos do modelo social degradante no qual está imerso o eu poético. Modelo que um Zigmunt Baumann resume muito bem como “modernidade líquida”.
Citemos alguns versos. Logo no segundo poema, “Espiral dos caminhos”, diz o poeta: “Deus deveria ter um caderno / de caligrafia para melhorar a letra”. Isto é, deveria..., mas não tem. Nem Deus, no seu poder absoluto (absoluto?), parece dar conta dos “caminhos espiralados / os caminhos sem chão, / as retas que não levam a lucidez”. Em “Minha foz do Iguaçu”, vê-se o aproveitamento, diria, pelo avesso, de uma imagem aquática, nesta sequência de versos: “Um arame de água / - o desconforto do abismo - / nada de mar vertical, / o drama de esperar / a catarata do tédio / as sete quedas da semana”. Logo em seguida, no texto “Código postal”, arremata o eu lírico: “No fundo sou um sujeito que não dá pé. / Por isso cada mergulho é um naufrágio. / E não faz bem à saúde / naufragar todos os dias”.
Partindo, assim, do inadiável desconforto de existir e da necessidade poética de pesar os elementos da vida, Ronaldo Costa Fernandes como que faz de sua dicção lírica um contrapeso estético e filosófico à gula da esterilidade, a esse sorvedouro de miasmas morais, enfim, a essa memória suína e decadente da sociedade contemporânea.
À desconstrução dos conceitos e das experiências, das convenções e das ideologias, evidentemente sob a gramática da linguagem poética, também passa pelo toque concreto e pelo arranjo formal e estilístico perante as camadas do signo. Dito de outra maneira, os ingredientes externos, isto é, os fatores reais (assuntos, temas e motivos), são reduzidos estruturalmente no poema enquanto dados internos, resultantes, portanto, da singularidade da elaboração discursiva.
Um verso, como o já citado “as sete quedas da semana”, legitima o que estou dizendo. Mas vejamos outros: “Aprendeu as cinco declinações do latim / mas não aprendeu a declinar do mundo” (p. 20); “Não fui criado para ser multidão. / Já tenho dentro de mim bastante gente. / Meus olhos têm vários crepúsculos por dia” (p. 21); “(...) o vasto latifúndio de sementes perdidas / fazem o verdadeiro silo do homem” (p. 50); “(...) nenhuma catástrofe é maior / que acordar a beleza” (p. 80); e “A vida – na vida só há ida, / não há retorno no que me torno” (p. 92).
No posfácio de A máquina das mãos, coletânea de 2009, destaquei este traço formal e linguístico na poética de Ronaldo, para acentuar o fato de que no poema não só importa o conteúdo temático; importa sobretudo o como este conteúdo temático se apresenta e se resolve no âmbito concreto da linguagem, pois é da relação orgânica entre forma e fundo que brota a beleza e a verdade da poesia.
Não esqueço ainda a célebre parábola bíblica das “pérolas aos porcos”, naquele sentido de enunciar verdades aos ignaros e aos estúpidos, porque quer me parecer que essa Memória dos porcos, ironicamente, constitui um evangelho pelo avesso, isto é, a boa nova da arte como um desafio à esclerose e à vulgaridade do mundo atual.
À corrupção dos valores e aos fundamentalismos ideológicos a poesia comparece com seus caminhos possíveis e com suas alternativas surpreendentes. Com mais este lançamento, Ronaldo Costa Fernandes, maranhense radicado em Brasília, dá continuidade a essa sugestão que se esboça e se cristaliza em obras anteriores, como Estrangeiro (1997), Terratreme (1998), Andarilho (2000) e Eterno passageiro (2004).
Hildeberto Barbosa Filho é crítico literário, professor da UFPR, poeta e ensaísta. Um dos grandes nomes da poesia contemporânea, acaba de publicar sua Poesia Reunida.
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