quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Afogado, poema RCF



O mar, em sua ressaca,
vive em eterno vômito.
Cheio de algas e fantasia
devolve o que não lhe pertence.

E guarda em si o peixe
e o estômago embrulhado
e não devolve o navio naufragado
porque as embarcações
são árvores de ferro
que a tragédia plantou.
Em seus intestinos
de água em ebulição
só o náufrago ele rejeita
porque o náufrago
é uma outra caricatura mórbida
de um peixe
sem barbatana
de um peixe
sem guelra
o afogado é um corpo estranho
o afogado é, mesmo morto,
a presença da terra
na digestão salgada.

Tudo cabe no estômago
de água do oceano,
mas feroz e decidido
se recusa a digerir
o que é da terra
e não pertence ao desvario
piscoso das marés.

Assim também devolvo
o afogado que não pertence
à aquosa e uterina imaginação
de ânfora plena de liquens
e aflições de salitre
nada que não faça parte
do inconsciente marítimo
dos meus prazeres submersos.

 
 
(poema de A máquina das mãos, Rio de Janeiro: 7Letras, 2009)
 
 
imagem retirada da internet: trollada

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