Há muito que desconheço a relação entre minha voz e o que
ela diz. Às vezes acredito que falo coisas que são independentes. Que as
palavras já estão dentro de mim, que basta abrir a boca para que elas saiam,
sem esforço. As palavras seriam independentes. Um apêndice, um órgão autônomo.
Ou uma digestão malfeita. Ou ainda algo que é secretado como um hormônio que a
mente não controla.
Sempre me pautei pelo bom senso. O bom senso é a norma do
viver, nem gordo nem magro, nem alto nem baixo. O bom senso é claro seria o
mediano e o mediano é o medíocre. Minhas palavras são medíocres como o branco.
Minhas palavras enfim são brancas. Mas me pagam por elas. Pelas palavras ditas.
Poucas vezes ganhei pela palavra impressa.
A palavra escrita também é um hormônio. Sinto como ela se
espalha pelo cérebro como um remédio que anestesia os circuitos nervosos. A
palavra escrita tem circuitos curtos.
Guardo comigo, como quem guarda uma tara, a origem das
minhas palavras. As pessoas se enfadam se você fala de si mesmo. As pessoas se
enfadam muito mais se você fala que suas palavras estão no mesmo campo da
serotonina, da dopamina ou da nora-adrenalina.
Às vezes minha palavra sofre de carência. De menos. De
não secreção. Fica seca, não há líquido, não há circuito nervoso, muito menos
curto. Então me afundo numa ausência que lembra braço amputado, metade do
pulmão arrancado, próstata extirpada, fratura craniana.
A palavra, a minha palavra, fica assim fraturada. Por
dias não há conserto, nada que a engesse, amoleça, costure, opere ou extirpe.
Minha palavra então sofre de desvios, de trânsito, de incômodo por não saber
onde se encontra. Outros órgãos falam. As mãos, que são falastronas por
natureza. A cabeça, que gosta de sublinhar e pontuar. O corpo mesmo, amplo,
musculoso, de voz grave.
Nasci para repetir o pensamento alheio. Queria ter
meu próprio pensamento, mas o pensamento dos outros é mais forte.
Com o
pensamento dos outros consigo comer, vestir e ter uma casa para morar. É forte
o pensamento dos outros.
também em e-book
( O viúvo. Brasília: LGE, 2005)
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