quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Razão e sensibilidade, poema de Matadouro de vozes


 

 




A razão, reta em seu esquadro,

calçada com as botas do cálculo,

e a geometria das certezas,

visitou-me ao sol da meia-noite.

 

Arguiu-me sobre minha temperança.

 

Antes da resposta,

pairou exata,

exalou a matemática da lucidez

e vangloriou-se

da física de suas poucas paixões.

 

A madrugada das palavras

alvorecia algumas velas

que se consumiam

na cera indecisa do bruxuleio.

 

A raiva,

que não se contabiliza

na acuidade,

tomou súbito a razão.

Rogou-me a praga

da literatura

a fim de que padecesse

o engano dos ingênuos

e insanidade dos crédulos.                            

 





 

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Vida e ficção em O apetite dos mortos, Hugo Almeida

Resultado de imagem para otto dix
(publicado no sãopauloreview.com.br)
Autor de vasta e premiada obra, Ronaldo Costa Fernandes publicou neste ano de 2019 dois novos romances, O apetite dos mortos (Jaguatirica), mescla de vida e ficção, e Vieira na ilha do Maranhão (7Letras), realidade romanceada. Nascido em 1952 em São Luís (MA), o escritor cresceu e se formou no Rio de Janeiro e, depois de ter vivido quase uma década em Caracas (onde foi diretor do Centro de Estudos Brasileiros na Embaixada do Brasil), mora há mais de 20 anos em Brasília. Sua obra inclui romances, contos, poemas e ensaios. Com O morto solidário venceu o prêmio Casa de las Américas em 1990, livro lançado aqui pela Revan em 1998. Conquistou outros prêmios expressivos com ficção e poesia. Autor de O narrador do romance (1996), é doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília (UnB).

O apetite dos mortos cativa desde a bela capa, imagem da agência Shutterstock em cores que fazem lembrar o Guerra e Paz de Portinari. E de certa forma o romance trata de uma espécie de guerra, uma guerra de egos entre famílias, amigos e desafetos, e da busca de um possível sossego. Narrado em primeira pessoa, em linguagem fluente e agradável, mas nunca banal, quase sempre em curso sinuoso como o fluxo da memória (“Seria uma cobra o ato de lembrar?”), traz as andanças físicas, afetivas, aflitivas e intelectuais de um rapaz aspirante à carreira literária, no seio de uma grande família sofrida e dividida, envolta em crimes sem solução nem castigo, fugas, desencontros, tudo misto de fatos, loucura ou devaneio.

Alguns exemplos: uma mulher que não acredita na morte da filha a imagina enterrada viva pedindo “mãe, mãe, vem me buscar”; um homem imagina-se perseguido e acaba matando o perseguidor com dois tiros, crime à luz do dia que confessa, mas ninguém viu; uma viúva recusa-se a pagar o aluguel do apartamento em que morava e o abandonou por causa do aparecimento do marido no imóvel. O apetite dos mortos é insaciável, mas os vivos também têm sede de vida. Em permanente conflito existencial, o rapaz ouve de seu analista que no seu caso não existiam aberração ou desejos retorcidos, “mas era algo daninho, o roer em silêncio do cupim”. Ele chega a se confundir com o entorno. “Difícil delimitar onde acabava meu corpo e começava o mundo. A realidade era extensão dele”. Lembra-se saudoso do pai, advogado íntegro: “Não estudei Direito para defender patifes”.

Sempre preciso e poético (“Ele, moreno; ela, alourada. Ele, alto demais; ela, exata”. “Um porte inglês, o paletó cruzado”), o texto traz ecos machadianos: “O navio partiu numa tarde chuvosa, poucas pessoas no cais, dez ou onze lenços apenas no convés da embarcação”; “Renata fizera dezoito anos, não era feia, tampouco bonita”.

Não falta humor no romance. O garoto era admirado por uma professora, que, abalada pelo abandono do marido (um garimpeiro bêbado), chama o aluno em casa.

“Quando entrei, ela disse:

– Camõesinho, recita pra mim Os Lusíadas.

E lá comecei:

– Por mares nunca d’antes navegados passaram além da Trabobana.

Ela revirou os olhos, o rosto enrubesceu, uma baba saiu do canto da boca, dei o fora da casa, nunca mais voltei lá.”

Uma história do Brasil contemporâneo, “num relato de balanço ou acerto de contas”, com a presença de escritores conhecidos, nem sempre nomeados, às vezes apenas sugeridos, como Ana Cristina César, Nelson Werneck Sodré, Bernardo Élis, Manuel Puig, Moacir Werneck de Castro, Gianfrancesco Guarnieri, Shakespeare, Nietzsche, Umberto Eco etc., O apetite dos mortos atesta a riqueza da literatura brasileira atual. O romance histórico Vieira na ilha do Maranhão, sobre a saga do jesuíta em defesa de índios e escravos, é tema para futuro artigo.

*

Hugo Almeida é autor de vários livros, entre eles o romance Mil corações solitários (Prêmio Bienal Nestlé-1988), e os infantojuvenis Meu nome é Fogo (Dimensão) e Viagem à lua de canoa (Nankin). É doutor em Literatura Brasileira pela USP, com tese sobre A rainha dos cárceres da Grécia, romance de Osman Lins.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

O telefone, poema RCF


O telefone,
quando não rumina
a língua como chicletes,
pode transformar
o dente em bala,
fazer da saliva argamassa.

O telefone,
anatomia de um só ouvido,
tecnologia de conchas arbitrárias,
pode vir a ser telegrama de vozes,
revólver na têmpora.



(do livro Eterno Passageiro, Ed. Varanda, Brasília, 2004)



sábado, 12 de dezembro de 2020

Fauna e flora humanas, poema RCF




Não sabe que bicho é.
Não sabe a que espécie pertence.
Se à imobilidade das árvores
sem frutos, de raízes tortuosas
ou se à categoria das plantas
que se expandem sempre agarradas.

Desconhece se faz parte
dos liquens, dos musgos, dos lodos
e de outros excessos de ruína
ou se sua categoria
se classifica entre os bichos que existem
sem que ninguém os note,
e, sem serem notados,
devastam o homem.

É bem provável que faça parte
dos tubérculos e que rume
para dentro da terra
e finque raízes aéreas
– expostas ao desdém dos outros –
e quanto mais amadurece
mais fundo e incógnito
se enterra vivo.



(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)


 (imagem retirada da internet: El Lissitzky, self-portrait.jpg)

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

O embrulho, conto RCF (Manual de Tortura)





Estou na esquina. Se tivesse de escolher um homem honesto para cumprir esta missão, eu me escolheria. Tenho trinta anos, dois ternos, um par de sapatos e minha honestidade. Meu pai não deixou nenhum bem ao morrer. Ele me dizia: Filho, minha herança será a honestidade. Com a honestidade, reconheço, não se compra apartamento ou carro novo, mas tem-se a consciência tranqüila e isso não tem preço. Ele repetia: Isso não tem preço.
Estou aqui há mais de três horas. Faz um calor dos diabos. O sol não dá bola pra honestidade. Tanto faz ser honesto ou ladrão, se sua da mesma maneira.
Não sei o rosto do homem que recolherá o pacote. O sigilo é alma da missão. Pode ser qualquer um: a velha que passa, a mocinha de jeans, o velho de boné, o militar de farda entre os civis, o rapaz da prancha de surf.
Aprendi a controlar os instintos. Quase não me movo. Tomo ordinariamente pouco líquido. Um homem, para cumprir a missão, não pode ser vencido pelas partes baixas do corpo. Posso passar um dia sem urinar. O mesmo acontece com a comida. Preciso de um mínimo para me manter em pé. Até o sono. Um homem que dorme muito não pode cumprir a missão.
Disciplinei meu corpo. Um homem honesto precisa disciplinar o corpo. Tenho um orgulho que não reparto com ninguém. Se contasse, diriam, mentiroso. Controlo meus sonhos. Tenho consciência de que sonho e os dirijo. Um homem honesto tem que controlar até mesmo o inconsciente.
Que me interessa se posso parecer suspeito? Os transeuntes não dão bola para um homem parado numa esquina. Só os desocupados ou os comerciantes da rua dão conta de mim. Os vendedores – as lojas hoje em dia andam às moscas – vêm até a entrada da loja. São homens de gravata e camisa branca de manga curta. Não usam paletó. Não se precisa de paletó para vender geladeira, aspirador de pó, batedeira ou televisão.
Sou um homem bem vestido numa esquina. Um homem bem vestido numa esquina não desperta suspeitas. Percebo alguns desocupados. O camelô grita bugigangas. O mendigo pede dinheiro no sinal. É um falso mendigo. Numa sociedade justa não haverá mendigos. Numa sociedade justa não haverá nem mesmo a necessidade de que um sujeito como eu se poste na esquina.
Percebo outras coisas: há leve trottoir de duas mocinhas. Quem passa não percebe nada. É dia, a calçada cheia, talvez nem mesmo os vendedores percebam o que percebo. A honestidade às vezes nos torna ingênuos. Mas a minha honestidade não é apenas inata. Aprendi a cultivá-la como quem exercita músculo. A honestidade é elástica e pode tornar-se flácida. Ou aumentar o tônus.
Dois malandros tentam me roubar o pacote. O primeiro me pergunta algo. Quê? Outro vem por trás. Nada é mais criança em nós que a atenção. Reajo, luto. O sujeito mais manhoso é o baixinho. É forte como o diabo. Ninguém me ajuda. Abre-se um círculo, grito, esperneio, o pacote se rasga. A multidão assiste impassível. Pode até ser que tenham algum sentimento de revolta ou de solidariedade com os bandidos.
Os bandidos hoje estão em todas as partes. Certa vez fui empenhar as jóias de minha mulher. A fila se desorganizava. Vinha o guarda, escolhia um elemento. Servia de exemplo. Preferia as mulheres e os idosos. Batia impiedosamente. Quando desmaiava, dois seguranças levavam o desordeiro para dentro da agência. O guarda se afastava. Esperava o próximo levante. De longe, já sabia quem seria a vítima. Estivesse ela ou não fora da fila. Ao chegar a minha vez, empurrei o pacote. Na primeira oportunidade, o caixa me mordeu a mão. Gritei. Por fim, com muita dificuldade – e com os dedos intatos – consegui retirar minha mão.
Talvez o público esperasse ver sangue e, aí então, reagiria de outra maneira. Em vez de indiferença, ficariam exaltados. Uns contra mim; outros, a meu favor. Quem sabe não se moveriam de seus lugares, mas torceriam e xingariam como no boxe ou nas rinhas de galo. Esta luta que eu e meus desafetos travamos mais parece coisa de mulher. Há empurra-empurra, dentadas, unhadas. Aos poucos, o público se entendia e vai procurar outra contenda ou acidente. Algo que os atice e tire da rotina. Algo com sangue, porque as brigas e acidentes sem sangue não monótonas como filme com pouco enredo.
Por fim, uma alma vem me auxiliar. O homem atarracado, meio calvo, pele seca e amarelada, olhos fundos e sem brilho, vestindo terno surrado, grita-lhes algo. Os bandidos fogem. O embrulho permanece intacto em seu interior. Meu medo é de que se rompesse. Teria forçosamente de saber o conteúdo. Um homem honesto não deve conhecer o conteúdo dos pacotes.
Passei a noite e a manhã inteiras na esquina. Uma hora qualquer dessas aparecerá o sujeito que receberá a encomenda. Um sujeito que faz abordagem deve saber a hora certa. A esquina é esta. Estou seguro. Um homem honesto não pode abandonar o posto. Poderia muito bem ir para casa.
Do outro lado da rua, sujeito baixo, gordo e suarento chega à esquina. Está bem vestido. Debaixo do braço, o pacote. Deve ser também homem honesto. Não nos olhamos. Não sinto sede nem fome. Muito menos sono. Fui preparado para ser homem honesto. Os camelôs começam a aparecer, as lojas abrem. Algumas pessoas bafejam o ar frio da manhã. As pernas sempre atrasadas para o trabalho.
Nas duas outras esquinas aparecem homens bem vestidos, com belas gravatas, sapatos impecáveis. Todos os dois carregam pacotes. Já não estou só. Não me atacarão. Nem quero supor o que traz o pacote. O pecado não está apenas em cometê-lo. Pensar é uma forma de transgredir. Se controlo o sono e os pesadelos, tenho de aprender a controlar os pensamentos.


(imagem retirada da internet: rodney smith)

domingo, 6 de dezembro de 2020

Quiromancia, poema RCF



 Xadrez no espelho photo xadrez-sozinho-espelho.jpg



As linhas da mão são
uma bola de cristal de carne
um tarô com dedos
um baralho com uma única carta.
As linhas da mão
não pintam nem bordam,
são mal traçadas linhas da vida.
As linhas da mão
seguem seus trilhos de pele
e dão a mão à palmatória:
costuram o futuro,
cosem o presente
e alinhavam o que não se pode pesar.


(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)


sábado, 28 de novembro de 2020

Fios que me tecem


nos fios que me tecem
                        nenhum leva à meada

e a lua dos olhos
                       não flutua na órbita

                      apagada no eclipse
                                    das pálpebras

roda sem centro
e centro sem periferia

amadurecimento de fruta
que nunca foi verde:

                         ver blandícia
                         na dureza da pedra
                         e aspereza
                                    
na superfície lisa da calma

tudo o que se vê engana

o barulho
do salto
no taco oco
quando não há taco
nem salto

a tristeza profunda
é água que mina
mas não banha
umedece somente para
por imobilidade
e presença
amolecer
e esfriar,
até as cordas dos nervos
                               puírem

                              e cederem ao peso
                             da sombra
                                       que nenhuma luz projeta



(do livro Andarilho, 2000)


imagem retirada da internet: solitude

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Entrevista ao jornal O Estado do Maranhão





Entrevista  ao jornal O Estado do Maranhão ao ganhar o prêmio ABL de Poesia 2010, cujo júri foi composto por Ledo Ivo, Afonso Arinos de Melo Franco e Alberto da Costa e Silva. A máquina das mãos é o quinto livro de Ronaldo, editado pela editora 7Letras em 2009.



P: O que você pensa da produção poética hoje em dia?

            É uma coisa curiosa, hoje temos uma diversidade enorme de propostas poéticas. Em nenhuma outra época houve tamanha variedade de opções. Desde o modernismo brasileiro que não existe um cânone fixo e indiscutível como foram as manifestações poéticas no passado. Basta verificar-se os estilos de época – Barroco, Neoclassicismo, Romantismo, etc. – para se observar que os poetas seguiam cânones estabelecidos por defensores ardorosos das novas estéticas que propunham por intermédio de textos teóricos ou mesmo textos criativos o estabelecimento de parâmetros a serem cumpridos. O problema, é óbvio, não é a falta ou multiplicação de manifestos a estabelecer uma norma comum, um procedimento a ser seguido. Pelo contrário, durante a vanguarda europeia desde os anos 10 do século passado até hoje, o que se viu, predominantemente no meio do século 20, foi a explosão de manifestos e diversificação de gurus e de condutas poéticas que tentavam impor-se e negavam quem lhes fosse diferente.


P: Então você acredita que hoje é válida qualquer maneira de escrever poesia?

            Existe uma dispersão e ao mesmo tempo uma busca, em cada autor, para se individualizar, isso é muito bom. Mas, com tanta variedade estilística se pode observar alguns comportamentos generalizados sobre a prática poética.

P: Existiria um cânone?
            Os cânones sempre existirão. Não tenho preconceito contra o cânone. E se poderia escrever um livro inteiro a favor e outro contra o cânone. O que hoje é novo, amanhã é cânone. Repare bem, hoje mesmo existe um cânone. Não falo de escritores consagrados, nem de Cabral ou Drummond, falo dos vivos e novos que pensam estar inventando o que já foi inventado.
            Então, ainda que exista uma variedade tão díspare de comportamento estilístico, observa-se que certos procedimentos como uso do prosaico, a linguagem de duplo sentido oriunda muitas vezes da publicidade, a abolição das formas fixas, entre outras características, compõem o novo código. Colocaram-se sob suspeita as verdades retóricas e foi introduzida a crítica da própria atividade poética. Acentuaram-se a ironia e a descrença numa leitura da realidade que coincidiu – ou é fruto do mesmo fenômeno social – com uma descrença das grandes verdades político-filosóficas.
P: E a oposição entre poesia e meios de comunicação de massa?

            Não se há de temer qualquer veículo, já que estes apenas se apresentam como material de condução e, momentânea ou permanentemente, podem fazer parte da poesia. Nada é desprezível no mundo da comunicação de massas. Tudo vale a pena, se a poesia não é pequena. A poesia não sofrerá nenhum dano. Por ter sido sempre um meio de expressão a que poucos tinham acesso, a poesia continua a permanecer marginal no mundo do capital.

P: Antes se falava que não se lia tanta poesia porque a poesia tinha ficado hermética. Mas hoje, com expressões mais simples, o uso da internet para divulgar a poesia, qual a razão de o consumo de poesia ser tão baixo?

            Creio que, em parte, pela especificidade da poesia, seu caráter condensado. Por mais claro e direto que o poema seja, ele sempre será uma transgressão da linguagem corrente. A percepção poética não é cognição ordinária como a apreensão da linguagem das imagens. A linguagem poética trabalha em seu cerne com uma sensibilidade leitora distinta da sensibilidade das artes visuais, por exemplo.

P: O que faz um poema permanecer?

            O ato poético obviamente sofre as injunções da história. Ora prevaleceu a estrita observância ao mecanicismo e ao ato de construção, seu maneirismo e a mestria em operar com formas fixas. Contudo, ao longo da história da poesia, observa-se que apenas se mantiveram os poemas que tinham algo a dizer. Permaneceram os poemas onde o poético intrinsecamente falando estava mais contido e denso dentro dos poemas. E mais ainda, permaneceram os poemas que tratavam da condição humana. Pois o início e fim de tudo vêm a ser o homem e sua experiência existencial.
            Estabelecer o cerne do poético e sua transcendência é o que me parece mais adstrito a uma leitura crítica apurada e que possa contribuir para o estabelecimento de poetas e poemas que tenham sua transcendência.
P: A poesia é necessária?

            Acredita-se que a mais antiga linguagem literária tinha algo de mito e de religiosidade. Creio que o poético perpassa o cotidiano das pessoas e que elas têm necessidade dele. A primeira afirmação de que qualquer um está aberto ao poético, bom ou mau expresso, é a construção metafórica que a própria língua cria e utiliza por intermédio de metáforas e metonímias, até se tornaram de uso comum e o falante da língua não perceber que em cinco frases utilizou material poético. É claro que o uso ao longo do tempo fabricou o lugar-comum, perdendo um dos elementos mais importantes do poético: o inusitado.

P: Qual estética você defende?

 

            Defendo a boa poesia de um Nauro Machado e José Chagas, a renovação de um Luís Augusto Cassas e Paulo Melo e Souza.
            Agora queria deixar um lembrete mais para os poetas do Sul, os marginais dos anos 70 que hoje estão cinquentões ou os que louvam o grafismo. Não há nada novo no front, alguns procedimentos já de uso de décadas são apresentados com alarde, embora já tenham uma existência centenária. Creio que a busca do essencial seja uma das propostas à sobrevivência do poético. O essencial estaria nas dobras do espelho do tempo, ter consciência de que sempre se caminha no território do transitório, mas aponta para o ontológico em forma poética.
            Qualquer que seja a expressão ou grupo a que o poeta esteja ligado o importante é que o bom poema a gente reconhece logo.






(imagens retiradas da internet: escher)

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Coração fugitivo, poema RCF






Não sei o que faço
para prender em mim
o coração que me escapa
entre as grades da razão
e se aloja no cérebro
lá onde não há trave ou ferro
que prenda ideia ou sentimento.
Mas sei também que meu coração
é um redemoinho que não pode fugir
de si próprio e por isso gira,
condenado, preso em sua água redonda,
até o cárcere do tempo
abrir a cela das dores
e deixar cativo
o coração fugitivo
que de si não pode fugir.








(do livro Memória dos porcos. Rio, 7Letras, 2012)

domingo, 22 de novembro de 2020

Correnteza dos meus pecados


Resultado de imagem para vivian maier
Os pesadelos se dividem
em pesadelos de água doce 
e pesadelos de água salgada.


A correnteza tem músculos de água
e a gente tem de fazer
queda de braço com os dias volumosos.


Os pesadelos de correnteza doce
são amamentados pelo leito
contido das margens ordinárias.
O liquidificador das perdas
dá de mamar aos redemoinhos.


As correntezas que nos levam
às margens amargas
fazem do nosso corpo
barcos verticais.
Por isso andamos asfixiados
pela vida afora à deriva,
na correnteza dos dias,
um outro rio dentro do rio.



(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)


sábado, 14 de novembro de 2020

A fuga do risco


 

Por um caminho eu vinha
carregando nos olhos a dúvida
que faz aparecer e desaparecer
a realidade.
Por um obséquio do círculo,
que não deixa nada escapar,
a dúvida em seu trapézio
colocava óculos de grau
em fatos que não eram míopes
nem ao menos de perto se turvam.
Quero fugir do risco
que separa, como nas estradas,
os que vão e os que vêm,
um risco de mão dupla
que pode se tornar
um acidente dos sentidos.


( do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)